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Mas é curioso pensar em como, ainda hoje, ser crítico de arte está diretamente relacionado a escrever sobre arte. Tenho me perguntado, com insistência, se o exercício da crítica de arte, hoje, pode ser subsumido à atividade escrita. Será que a forma textual já não compromete a relação mais radical que o crítico pode ter com a obra? E quando se trata de um texto encomendado, que tem por finalidade figurar em uma publicação e cumprir uma certa expectativa de “explicar”, “apresentar” um trabalho de arte? Na escrita há sempre um certo desejo de comunicação, daí a busca pela coerência, ordenação, precisão. Essa comunicabilidade – um pouco inseparável da feitura de um texto qualquer, acredito – e a mediação (termo amplamente usado no mundo da arte não só em relação aos textos críticos, mas também para os “textos de parede” de exposições, para textos veiculados em meios de comunicação de largo alcance e também para os serviços educativos) são, atualmente, pressupostos de qualquer texto de arte. Espera-se que um texto de crítica comunique uma ideia clara (de preferência que ele emita um julgamento) sobre uma obra e que ele a explique, fazendo a “mediação” entre o suposto objeto – obscuro – de arte e o público que é incapaz de “ver” sozinho.
Talvez sejam esses pressupostos, que aparecem na vida prática em forma de exigências (do editor, do galerista, do museu, etc), que estejam há tempos aborrecendo críticos, artistas e até mesmo o público, que começa a desconfiar de uma arte que precisaria de “bula” para ser entendida.
Em A crítica de arte como espaço privilegiado para a ficção contemporânea,Ricardo Basbaum dirige-se a esse mesmo problema. O autor fala de críticos que não estão dispostos a assumir riscos, produzindo textos reativos, sob encomenda, protocolares. Para ele, esses críticos não enfrentam o trabalho de arte, mas acabam por se esquivar dele, naturalizando o texto como mais uma peça na “linha de produção” do mundo da arte: obra –> texto “crítico” –> mercado. Nesse tipo de texto, segundo minha compreensão do texto de Basbaum, o crítico acaba por se colocar invariavelmente numa posição de “juiz” ou “professor”. Ou seja, em vez de dialogar com o trabalho, de travar um embate, de acompanhar seus impasses, suas ambiguidades, o crítico coloca-se de fora, numa posição segundo a qual seria capaz de formular um juízo neutro e distanciado.
Também é sobre essa posição de autoridade, ou “sujeito do suposto saber”, que Rancière lança sua atenção no ensaio já mencionado aqui. Embora ele comente mais a condição do espectador do que a da crítica, são pontos de vista diferentes de um mesmo funcionamento do sistema. Rancière argumenta que todo espectador é capaz de realizar, quando confrontado com um trabalho de arte, jogos imprevisíveis de associações e dissociações e nisso reside sua emancipação. “Ser espectador não é uma condição passiva que temos que transformar em atividade. É nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, atuamos e conhecemos também como espectadores que relacionam a todo momento aquilo que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram ou sonharam… Não temos que transformar espectadores em atores, nem ignorantes em doutores. O que temos que fazer é reconhecer o saber que opera no ignorante e a atividade própria do espectador”.
Se levarmos às últimas consequências o pensamento de Rancière, segundo o qual o espectador é emancipado, não faz o menor sentido pensar numa crítica cujo compromisso seja o de esclarecer o leitor. Afinal, esse leitor tem uma visão própria do objeto de arte, não precisa que ninguém o auxilie nisso.
Como agir como crítico de arte nessa direção? Como sair da posição de “autoridade no assunto” sem cair em respostas evasivas ou relativistas, do tipo: é impossível formular qualquer discurso sobre um trabalho de arte, pois ele aparece diferente para cada subjetividade? Como conciliar essa abertura ao Outro [espectador] e conseguir formular discursos potentes que digam respeito aos trabalhos de arte? Como fazer uma crítica prospectiva, como a chama Basbaum, em seu texto, que não seja uma consequência da obra, mas atue junto com ela, na produção do Real? Uma crítica que seja o “duplo” da experiência sensorial da obra, em termos discursivos, capaz de gerar uma experiência conceitual tão radical quanto a da obra?
Levar às últimas consequências o apagamento das fronteiras que definem quem faz, quem vê e quem pode comentar um trabalho de arte parece ser uma condição formulada por Basbaum. Ela está implícita na noção do “artista-etc”, aquele capaz de transitar por diversas posições do mundo da arte e realizar uma des-hierarquização das posições, relativizar as especificidades dos campos de conhecimento, descolar-se de suas competências, do terreno do já-sabido. Com isso, lança-se ao desconhecido, ao surpreendente, tal como as obras de arte são capazes de despertar conexões jamais formuladas, pensamentos improváveis, que rompem categorias já estabelecidas.
O que essa casual confluência das leituras dos textos de Basbaum e Rancière me permite pensar é que o compromisso da crítica tem que ser com as experiências que os trabalhos de arte são capazes de gerar. Um compromisso que não é com um suposto público carente de informações e incapaz de pensar por si mesmo. Talvez esse compromisso exija que os críticos vejam a crítica de arte para além de um gênero literário, para além de um estilo discursivo, talvez até para além do discurso.
Basbaum finaliza seu texto, após comentar os trabalhos de alguns artistas próximos, apontando para dois “veículos” novos à época: o quiosque multifuncional de Bia Junqueira e Helmut Batista e a revista item, duas experiências muito profícuas, hoje sabemos. Permito-me aqui também comentar minha experiência recente no Ateliê397, espaço no qual venho trabalhando, junto com os colegas Carolina Soares, Mariana Trevas e Marcelo Amorim em São Paulo. Nem só de textos vive um crítico de arte. Talvez o crítico tenha que abandonar o terreno do texto. Tornar-se um crítico-etc. Deixar as palavras, “somente palavras”, rumo a outras atividades. Ou tentar conciliar as palavras, os conceitos, com uma prática nova. A criação de um espaço a partir do qual seja possível um diálogo mais aberto com os pares, a partir do qual seja possível formular propostas em conjunto com artistas, a partir do qual seja possível arriscar e testar certas injunções. Um espaço aberto e em construção permanente. A tentativa de montar uma programação consistente e viável economicamente para o Ateliê397 tem sido o exercício mais radical de crítica de arte que me propus até hoje.
[1] — Resolvi explorar a coincidência de que, no convite à colaboração para esse número da Tatuí, mencionavam o filósofo, que eu já vinha estudando, e trazê-lo também para a discussão. Os trechos foram traduzidos livremente por mim, mas aconselho a consulta do original para compreensão mais rigorosa.