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Tempos atrás eu trabalhava no depto. de física da Universidade Federal de Pernambuco como bolsista de iniciação científica. Apesar de estudante de engenharia, pensava em filosofia da ciência enquanto submergia naquele mundo da pesquisa básica cujos códigos iam ficando mais claros para mim. Lá aprendi que não só a física se baseia e depende do uso rigoroso de um método, como todo o sistema acadêmico que a contém e cujo objetivo é a clareza na comunicação do conhecimento. Aprendi também que, apesar disso e contrariando um clichê bem difundido, outro elemento fundamental para o desenvolvimento da pesquisa científica é a criatividade e a intuição. Embora essa idéia pareça óbvia para alguns, não deixa de soar paradoxal quando se pensa nesse sistema tão bem “amarrado” ou, melhor dizendo, estruturado, que requer tanta coerência de pensamento e procedimento.
Vários anos se passaram e agora, como artista plástico, relembro aqueles tempos tão interessantes com o objetivo, talvez meio estranho, de pensar a questão da coerência em arte, o lugar da criatividade. E vou fazê-lo do ponto de vista de alguém que atua profissionalmente nesse campo, não só criando, mas também participando de suas outras instâncias tais como exposições, curadorias, relações com galeristas, etc. Não considerarei aqui a produção diletante, ou terapêutica, cujos praticantes têm outros interesses e objetivos.
No convite que recebi das editoras desta revista, me chamou a atenção o argumento de que há uma demanda/necessidade crescente por coerência na arte, “acreditando que tem sido cada vez mais cobrada – sobretudo por parte da crítica e da curadoria – a manutenção, ao longo da trajetória de artistas diversos, de certos aspectos poéticos cuja recorrência parece denotar um caminho ou preocupação geral do trabalho”. Curioso, pois sempre achei que essa demanda/necessidade estava (ou deveria estar) presente desde sempre. Entendo a arte (aquela feita pelos profissionais, insisto) como um subsistema da cultura, que pressupõe grupo social e comunicação. As obras propriamente ditas se constituem em linguagens e como tal são responsáveis pela articulação de sentido, pela geração de reflexão e conhecimento. Mesmo que o artista não se dê conta, ele é formado e trabalha sempre inscrito nesse subsistema que tem questões próprias e desenvolvimentos visuais particulares segundo a época e localização geográfica.
Anacronismos à parte, sabemos existir desde os gregos antigos algum tipo de ensino da arte. Platão já criticava a mimesis na pintura de sua época. Conhecemos textos filosóficos sobre pintura na China há muitos séculos. Quero dizer apenas que o pensamento sistemático sobre a arte e suas questões existe há muito tempo, tanto da parte dos artistas quanto dos teóricos. Este desenrolar, esmiuçado em qualquer manual recente de História da Arte, é que gerou evidentemente nosso panorama atual. Mas o que é mais interessante é conseguirmos resumir mais de dois mil anos de História em algumas dezenas de páginas, dentro de uma narrativa perfeitamente “lógica” e, por isso mesmo, facilmente compreensível: a arte é um sistema estruturado, assim como a ciência ou qualquer outro. Não é de se estranhar o surgimento das academias artísticas européias após o renascimento, o que me parece até previsível face a toda essa tradição da arte e que findou seguindo o caminho de outras disciplinas naquele momento. Essa organização institucional está presente hoje nas universidades e só passou por um período de crise maior durante o auge do modernismo na primeira metade do século XX. Desde os anos 50 nos EUA, com a geração de Robert Morris (artista importante, mas também teórico), os departamentos de artes das universidades (substitutos das antigas academias) no mundo todo passam novamente a ocupar um papel cada vez mais importante no meio artístico, não só em relação à formação dos artistas, como também no âmbito da crítica profissional, editando publicações muito influentes.
Aqui podemos esboçar um paralelo entre ciência e arte, pois ambas são estruturadas em linguagens que seguem certas normas definidas por consenso e que são transmitidas e também criticadas pelas universidades. Na base disso tudo está a noção de comunicabilidade, de onde deriva naturalmente a necessidade de publicações, congressos, serviços educativos e a figura do curador. Através do desenvolvimento de “leituras”, ou interpretações, tanto de teorias da física quanto de trabalhos de artistas, nova informação é gerada de forma articulada e realimenta os respectivos sistemas, torna-se “combustível” para novas ações. Note-se que estas “leituras” normalmente resultam em linguagem diferente da original: pode-se partir da matemática ou da pintura para gerar um texto escrito, ou pode-se partir da matemática para gerar um resultado em pintura, como fez Picasso no Cubismo. Essas trocas tão férteis entre campos em princípio tão díspares são possíveis, pois ambas, ciência e arte, estão organizadas em sistemas conceituais bem-estruturados, embora com objetivos diferentes.
Deixando de lado a confusão causada pelo termo “arte conceitual” – e que se refere a uma parcela muito pequena de uma produção recente –, em minha opinião toda arte instigante e que vai gerar frutos no futuro é conceitual no sentido mais amplo do termo. Não importa se a manifestação visual se dá em forma de pintura, escultura, instalação ou performance. É assim que percebo de onde surge a necessidade de coerência em arte, aqui entendida como uma busca do artista por uma clareza de intenção que possibilita um aprofundamento de questões do seu interesse e que se materializa em obras com grande capacidade de geração de sentido, de discursos. A coerência desejável e enriquecedora aparece como uma conseqüência natural do amadurecimento da poética do artista e não como um fim em si mesmo cujo sentido seria o inverso, o do esvaziamento, que poderia ser traduzido como “academicismo”, herança irrefletida de procedimentos e linguagens enrijecidos sob a forma de cânones. Imagino que a maior demanda por coerência em arte, identificada pelas editoras, talvez esteja ligada ao fato de nos últimos anos no Brasil termos testemunhado uma superexposição de artistas muito jovens, possibilitada por novos prêmios e programas específicos, assim como o surgimento de novas galerias interessadas em carreiras iniciantes e promissoras. É natural que se crie uma expectativa muito grande e uma cobrança obviamente injusta sobre os ombros de quem mal iniciou uma trajetória que é sempre espinhosa e que dificilmente será linear.
Um aspecto dessa discussão sobre coerência em arte que merece ser observado atualmente diz respeito aos processos de criação e ao resultado visual da produção artística. O cenário contemporâneo tornou-se muito complexo a partir dos anos 1960, as estratégias de operação no campo artístico se multiplicaram, muitas novas possibilidades se abriram e em sua raiz está uma mudança estrutural desencadeada por Marcel Duchamp no começo do século XX. Com o “ready-made” surge a noção de “apropriação” e assim nosso tradicional foco de atenção no objeto criado, a obra de arte, foi deslocado para o processo que a gerou. O aspecto mental, intelectual, da criação artística (que sempre esteve presente, vale frisar) é posto em evidência. Aqui, por uma questão de espaço e conforto meu, gostaria de restringir o horizonte de observação à área em que atuo, a pintura. A pergunta que coloco agora é a seguinte: coerência em relação a quê?
É natural pensarmos que um artista maduro, num determinado período de sua carreira, esteja preocupado com certas questões e que estas o conduzam a criar um corpo de trabalho cujo aspecto visual passa a ser identificável. Perceberíamos, nesse caso, uma coerência formal. Lembro imediatamente de Giogio Morandi, artista emblemático do modernismo italiano, que restringiu durante décadas o seu campo de pesquisa à natureza-morta e ao uso de pouquíssimos elementos (principalmente garrafas) e cores, sem diminuir em nada a densidade de conteúdo e vitalidade do resultado ao longo de toda sua carreira. Infelizmente, por conta de uma simplificação de ordem didática, a noção de “estilo”, gerou-se um ruído quando da observação de trajetórias como esta,
pois rotula-se um artista a partir do seu período de produção considerado mais importante. Isso facilmente leva o estudante, ou o amador ainda pouco afeito ao assunto, a inferir erroneamente que os interesses de toda a vida e, por conseqüência todo o trabalho visual do artista, podem ser resumidos aos daquele período. Basta olharmos, literalmente, para o teto da Capela Sistina para constatarmos que o mesmo Michelangelo que iniciou sua grande obra como “renascentista”, vai terminá-la no Juízo Final já completamente “barroco”. Confunde-se, assim, coerência formal com uma espécie de estagnação formal. Coerência dentro de uma produção visual significa nexo, conexão lógica, inteligível, entre momentos distintos da mesma, não a mera repetição de fórmulas.
Acontece que recentemente outra possibilidade abriu-se, muito ligada ao processo criativo do artista em sua acepção mental, intelectual: falo da uma coerência conceitual. Uso como exemplo o artista alemão Gerhard Richter, cuja obra tem gerado diferentes – por vezes conflitantes – interpretações. Pinçarei da sua vasta e complexa produção apenas duas pinturas, a título ilustrativo, ambas realizadas em 1988, mas formalmente bem distintas. A primeira (“AB, St. Bridget”, col. do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona) é abstrata por excelência, onde são articuladas cores e texturas sobre a tela. A segunda (“Funeral”) poderia até parecer abstrata numa rápida passada de olho, mas o próprio título nos alerta que estamos diante uma outra coisa. Aos poucos identificamos formas, pessoas, árvores. Não há cores e tem-se a impressão de que a matriz da pintura foi uma fotografia em preto e branco. Mas tudo é turvo. Algo “corrompeu” aquela imagem a um ponto no limite da compreensão. Percebe-se que a pintura foi construída manualmente como figurativa para depois sofrer uma espécie de apagamento. E é fato. Richter provoca mecanicamente um arraste parcial da tinta, criando uma espécie de véu sobre a imagem, reduzindo drasticamente sua possibilidade de descrição do quer que seja. Ele nos empurra no sentido da abstração para, em seguida, graças ao título, nos trazer de volta ao mundo das coisas. Quando voltamos à primeira tela, notamos que um processo semelhante de arraste também foi usado, mas aparentemente até um ponto no qual qualquer representação deixa de existir. Mas continuamos… E de repente algo de paisagem parece surgir, reflexos, folhas, água. E a mesma sensação de apagamento reaparece. Os dois trabalhos, visualmente tão díspares, parecem agora irmãos indissociáveis, trazendo consigo uma memória de algo indefinível, uma lembrança ao mesmo tempo da fragilidade e da força do mundo das imagens.
Para concluir esse raciocínio, gostaria de dizer que acredito que a necessidade por coerência na arte está intimamente ligada a uma outra necessidade primordial nossa, seres sociais, que é a de comunicação, e sem a qual não sobreviveríamos. As linguagens se desenvolveram para nos unir dentro de nossas diferenças e complexidades. Por isso lembramos que qualquer trajetória artística que mereça esse nome será sempre cheia de nuances, multifacetada, não-linear, gerando sempre abordagens diferentes. A própria maneira pela qual olhamos o mundo assim o é. Em vista disso, o meio artístico se articula sempre em consensos frágeis. Não poderia ser diferente, e acredito que muito do seu interesse decorra desse fato, assim como boa parte da dificuldade de assimilação da arte contemporânea por um público maior. O exercício de criação de discursos sobre arte, em diversos níveis, é fundamental tanto para os artistas como para qualquer outro que se dê ao trabalho de observar qualquer obra. Sem comunicação, por mais cheia de ruídos que seja, não somos nada.