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Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
Nelson RodriguesRrose Sélavy et moi esquivons les ecchymoses des
exquimaux aux mots exquis.
Marcel Duchamp
Procuro sofregamente um dicionário de filosofia ou outro, que possa me iluminar sobre um ponto de partida, e então vislumbro uma saída quando encontro o que diferencia sutilmente coesão de coerência: trabalham juntas em colaboração, na qual esta última sugere união de um conjunto qualquer, de forma que a totalidade se ofereça submetida a certa lógica. O conceito de coerência contribui para o efeito de completude orgânica de uma dada realidade.
Como em uma tessitura, que não por acaso tem a mesma etimologia da palavra texto, a compreensão mais facilitada de algo se dá na medida em que percebo as relações entre as distintas partes componentes da totalidade observada. Assim, consigo entrever aspectos que possam me guiar para um significado mais geral, ou mesmo global.
No entanto, uma diferença sensível parece surgir: na coesão, freqüentemente posso me abrigar em torno de aparências mais facilmente detectáveis, passíveis de serem percebidas a partir de um olhar menos atento, superficial; no entanto, a coerência parece demonstrar mais fôlego, é mais exigente, já que está mais atrelada às deduções que se possa alcançar a partir da busca de uma unidade de sentido que, dentro de um certo número de possibilidades, pode não ser tão obviamente observável.
Na história das artes visuais do século XX, houve um momento particularmente exemplar em que certos artistas, dadas as condições de descontentamento com a situação de uma Europa que se dizimava na guerra iniciada em 1914, além da constatação de que nenhum campo do conhecimento humano – fosse ele advindo da religião, da filosofia, ou da ciência – pudesse impedir a catástrofe, resolveram em 1916 fundar um movimento literário que se rebelava violentamente contra as regras da
coerência do texto poético. No seu primeiro manifesto, através do poeta romeno Tristan Tzara, preconizaram:
Nós não procuramos nada, afirmamos a vitalidade de cada instante, o que
interessa ao dadaísta é sua maneira de viver. Dada não significa nada, é um
produto da boca.
O dadaísmo constituiu-se de ações que elevaram, em todos os domínios da arte, a realidade do mundo banal ao nível de material artístico: artes plásticas, fotografia, poesia, teatro. Neste processo de democratização da arte houve a abolição dos gêneros: valores de textura dos materiais, a sílaba a partir da qual se canta o ritmo, o menor fragmento do objeto, ou do objeto achado, do qual se aprecia seu valor absoluto. Esta nova atitude em relação à linguagem os conduziu aos poemas fonéticos, nos quais o tema foi abandonado dando lugar ao acaso, ao acidente, que passou a ser elevado a nível estilístico.
Esta aventura iconoclasta foi a negação de toda lógica. Liberdade pura em cuja dispersão e ausência de coesão pode-se, a posteriori, observar como constituinte uma atitude de grupo que, no entanto, teve a sua coerência.
Quando se trata da obra de arte per se, convém lembrar que ela é freqüentemente abordada na linguagem cotidiana como aquela que chamaremos, para efeito de clareza, de obra específica, que se liga a um momento na carreira artística de um autor, e de obra trajetória, que corresponde ao projeto poético de um dado artista e, como tal, compreende suas diversas fases e séries de obras específicas por ele criadas ao longo de sua carreira. Embora ambas tenham natureza processual, é no caso da obra como trajetória que é posta em evidência a necessidade de um melhor conhecimento e o conseqüente acompanhamento crítico das obras de cada período. Deste modo, compreende-se a coerência interna que mobiliza o artista.
Mas o que dizer de um agente poderosamente transformador de suma importância como Picasso, cuja obra apresenta características estilísticas de tal modo adversas, que foi objeto de um estudo de Meyer Schapiro [1] , publicado postumamente? No ensaio que dá nome ao livro, o autor se deu como desafio, através de análises muito consistentes, provar a tese de que o que confere unidade à obra picassiana, o que faz com que possamos considerá-la sob uma luz homogênea e, portanto, dar–lhe o crédito de um legado coerente, é a transformação da figura em abstração e da abstração em figura.
Na esteira de algumas reflexões formuladas anteriormente por Hegel, Arthur C. Danto [2] postula o fim de uma certa arte, aquela que não pode ser compreendida pelo que denominamos de história da arte, uma história que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares e, principalmente, pode ser explicada através de manifestos e de narrativas, como aquela que pode ser observada a partir do Renascimento com o surgimento da perspectiva e a Arte Moderna, analisada por Greenberg. Vivemos então, hoje, um período marcado por um direito adquirido pelos artistas na total liberdade de escolha sobre qual tipo de arte acatar na sua produção e quando fazê-lo, potencializando a autoconsciência no processo da escolha.
Logicamente tal estado de coisas coloca em crise as regras do exercício e da práxis da própria arte, por um lado, e a sua recepção, por outro. A prática artística se torna consciente de seu próprio processo. O limite entre aquilo que pode ser visto legitimamente como arte, ou não, se torna indiscernível em algumas circunstâncias, tal a sua proximidade com o que vemos com objetos puramente inseridos na esfera do cotidiano e do banal. A proliferação de estilos põe em evidência a insuficiência de critérios que possam valorar e separar o joio do trigo em termos do que é arte que “mereça este nome”.
A produção das obras deixa conscientemente de lado sua antes louvada e desejada coerência estilística e ainda por cima assume tudo como atitude intencional. Se, para Danto, a Pop Art marca este momento do fim da arte, transformando a narrativa moderna formulada por Greenberg, que passa então de essencial a contingente, nas décadas de 1960 e 1970 a interação entre arte e vida se radicaliza e a integração entre as linguagens se dá com freqüência.
O Fluxus, tendência que abrangeu diversos artistas de vários continentes como Europa, Estados Unidos e Japão, e com influência manifestadamente neodadaísta, vai marcar, a partir de figuras estrelares, verdadeiros guias, como o artista norte- americano John Cage, este momento no qual tudo se torna mais fluido e interpenetrável. A valorização do processo de criação, da precariedade material da obra e do seu conceito torna-se moeda corrente.
A constante migração entre as áreas artísticas, por parte dos artistas, parece relacionar-se especularmente com a multifacetada vida hoje. A reconciliação que se realiza entre o artista e aquilo que o rodeia é verificável também entre o artista e os vários tipos de arte. Este deixa de ser exclusivamente pintor, escultor ou escritor para poder ser todas essas coisas. A arte que envolve meios tecnológicos reforça ainda mais o caráter híbrido, que se refere à dissolução das fronteiras entre os suportes e as linguagens, assim como à constante reciclagem das informações que circulam nos
meios de comunicação de massa.
Ora a obra de um mesmo artista se apresenta como desenho, ora como vídeo, teatro, performance, cinema, modelos gerados em computadores, entre outros. Por sua vez, os sons ora são registros brutos, ou processados, ora edições gravadas. Em várias ocasiões há um complexo misto de linguagens, em que não se dá pra determinar os limites de participação de cada elemento constitutivo.
Trata-se, para o público, de interagir e compartilhar o desafio e a resistência de um objeto híbrido, fundamentalmente múltiplo, sem conceito fixo, de identidade complexa, que tende a se diluir, ou incorporar os modos de constituição de outras linguagens.
Na sua maioria, estas obras provêm de artistas que absorvem e reagem às múltiplas orientações da arte no mundo, cujo amplo leque de interesses individuais mostra a heterogeneidade e a incrível multiplicidade das investigações estéticas contemporâneas.
Some-se a isto tudo a consciência de que a contradição é sem dúvida um comportamento inerente ao homem. Faz parte de sua essência a incorporação de um eterno e irremediável vir-a-ser, na esperança de um processo contínuo que o conduza a uma evolução qualitativa e contribua para seu enriquecimento pessoal.
Na arte esta situação de eterna busca é constantemente reivindicada como catalisador do desejo permanentemente renovável de produção: De onde viemos, o que somos e para onde vamos. É a tríade que permanece no seu posto inatacável de questões essenciais que, mais do que exigir uma resposta definitiva que se sabe de antemão permanecer utópica, busca o prazer da aventura do tatear, descoberta a partir da interioridade da viagem em si mesma.
E se o homo ludens assume o experimental, o prazer do jogo, a dimensão do lúcido tem a ver com o brilhar. Lucidez e luz partilham a mesma raiz etimológica latina. Quando um ser humano aprende algo, ultrapassa uma etapa, se torna mais lúcido e consciente sobre sua própria condição humana. No caso do artista, ao conseguir partilhar eficazmente com sua obra um momento de descoberta, ou mesmo a inquietação de suas dúvidas e questões, os seus neurônios, estimulados, emitem luz e
alimentam a esperança de uma identificação espiritual com outras subjetividades, já que na maioria das vezes ele não chega nem mesmo a conhecê-las pessoalmente.
Pode-se então perguntar em que sentido as promessas sempre renovadas de liberdade atual sem exclusões na práxis artística tornam tão paradoxal pensar que o campo da arte contemporânea encorpa a possibilidade da coerência como uma virtude? E se ela existe, de que natureza seria?
Já o ready made de Marcel Duchamp, no início do século, apontava para uma perda de valor absoluto da obra e a conseqüente valorização do contexto, contexto este definidor da maneira como se tornam indissociáveis o conteúdo da obra e seu modo de apresentação e/ou expressão.
Nenhuma destas duas instâncias, porém, são aprioristicamente apreendidas: a obra deve primeiramente ser entendida à luz de conceitos, ou teorias estéticas vigentes e do seu conhecimento por parte das pessoas que com ela se relacionam.
Cresce, a contragosto de uma boa parte do público, a importância do olhar profissional sobre o objeto estético para mediar seu processo de compreensão em escala mais abrangente junto a uma platéia na maioria das vezes atônita, quando não se sentindo impotente.
No caso de muitos artistas, a incoesão pontual das obras se confronta com uma coerência menos óbvia do conjunto da mesma, embora este como um todo se manifeste no sentido de continuar levando em conta as suas preferências, crenças, desejos, valores éticos e consciência de valores estéticos. A tarefa se complexifica e o fio subterrâneo de transmissão que lhes confere homogeneidade torna-se mais
desafiador para o entendimento do observador. Mas, acredito eu, é preciso apostar que eles existam, caso contrário… A fragilidade aparece.
Apesar do confronto direto com a obra específica propiciar a possibilidade do gozo para todos, o julgamento de valor pertinente da obra de arte é cada vez mais atravessado pela necessidade da compreensão do seu conteúdo à luz da sua adequação aos meios de expressão empregados, como já preconizava Hegel, mas a isto se soma ainda a importância de conhecer e conseguir apreender no universo proteiforme das poéticas contemporâneas a coerência implícita na trajetória individual do artista. É como se, mesmo sob o risco de confrontá-lo com uma crise, pudéssemos dirigir-lhe uma frase como esta:
– É verdade que tudo é permitido, mas…ei, qual é mesmo o seu projeto artístico?
[1] — Meyer Schapiro, A Unidade da Arte de Picasso, tr. Ana L. D. Borges, SP, Cosac y Naify, (2000), 2002.
[2] — Arthur C. Danto, Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história, tr. S. Krieger, SP, Odysseus, 2006.