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Como toda linguagem, a arte é resultante de um arbitrário cultural que se funda num sistema de signos comunicantes, dotados de certas especificidades, a ponto de demarcar padrões de distinções relativamente a outras formas de linguagens. Tais padrões são o que normalmente identificamos como convenções, acordos, vocabulário próprio. O reconhecimento disso nos leva ao entendimento de que a arte é expressão de uma construção social, e não uma imanência. Nestes termos, falar de coerência na arte pode dizer respeito apenas a unidades relacionais desentenças que, como modalidades formais, estabelecem significados passíveis de compartilhamento entre sujeitos envolvidos nesse espaço institucional a que estamos nos referindo: a instituição arte.
Por outro lado, fixar-se em tal formalismo resulta, não raro, num tipo de abordagem eminentemente essencialista, capaz de resvalar nosso argumento por um processo de reificação da arte como instância dotada de uma imanência e uma aura que ela não dispõe. Como linguagem, a arte se manifesta, primordialmente, por seus usos. O que implica, de imediato, constatar a não existência de um modelo único e correto do ser artístico. Afirmar um modelo único, nesse sentido, é correr o risco de transformar o hegemônico no correto, o que não seria mais do que um modo de pura legitimação.
Sociólogos e filósofos têm argumentado em defesa de uma orientação tipicamente construtivista da arte e, por conseguinte, anti-essencialista. De um modo geral, observam que por arte devemos entender conjuntos de atitudes e objetos socialmente legitimados no interior de um campo, mundo ou sistema da arte. Por diversos caminhos, esses autores identificam tais processos de legitimação seja por convenções estabelecidas no mundo da arte (BECKER, 1982), seja por delimitações de posições distintas no interior do campo artístico (BOURDIEU, 1996 e 2007), seja pelo pressuposto que define arte especificamente pelo seu funcionamento simbólico e não como uma entidade em si (GOODMAN, 1978).
Se tomarmos por certas tais tendências argumentativas, falar de coerência na arte diz muito mais respeito a formas de disputas por posições de prestígio no interior do seu espaço social, do que a uma suposta identificação de suas propriedades inatas. Ao cabo e ao fim, coerência passa a ser uma condição necessária para se alcançar um dado objetivo: o reconhecimento e, mesmo, a canonização de tendências ou modalidades estéticas socialmente justificadas por pares envolvidos assimetricamente no circuito da produção, circulação e consumo de bens simbólicos.
A rigor, portanto, definir coerência na arte é, no mínimo, algo incoerente. Pois, do contrário, o que significaria coerência na arte? Ora, afirmar tal coisa não significa titubear diante de problemas sobre racionalidade e irracionalidade. Longe disso, significa ter bastante clara a necessidade de se ter parâmetros para uma definição de algo como coerente. Neste caso, entre outras questões, tem-se que identificarno próprio circuito da arte os critérios estabelecidos para esse estado de coisas: com efeito, o velho dilema autor-obra-público está dialogicamente enredado nas estruturas de produção, circulação e consumo, como já aludimos.
Assim, como vimos, a arte seria coerente por estabelecer unidade com os padrões tradicionais de representação, por ter uma função social clara, ou por seguir as novas convenções estabelecidas pela arte contemporânea – que é justamente a de por em questão regras delimitadoras dos espaços de arte e não-arte. Aliás, este questionamento nos remonta ao período das vanguardas históricas, quando a tendência era a de negação do caráter orgânico da obra, com a conseqüente afirmação de sua inorganicidade. Esse foi o primeiro momento de descrédito quanto à separação entre as especificidades da arte e não-arte do esteticismo.
A esse respeito, caberia a alusão a três estudos distintos a propósito dos processosde legitimação histórica da arte na constituição da modernidade. Refiro-me ao ensaio sobre as vanguardas artísticas em Bürger (1993), à pesquisa de Bourdieu (1996 e 2007) sobre a formação do campo literário na França e ao estudo sobre processos estruturais e imaginários na sociologia da arte de Francastel (1973).
Em seu estudo, Bürger identifica que, após relativa decadência do sistema das academias e da emergência de um corpo de críticos independentes e negociantes, a autonomia da arte perdeu sua substância e seu contato político com a praxis-vital, em particular, dado o predomínio da lógica instrumental da racionalidade meios-fins dominante nas interações da vida cotidiana da economia capitalista (HEYWOOD, 1997). Com efeito, a crença da arte em sua liberdade e distinção teria representado uma perda do seu horizonte crítico e político, sendo a “vacuidade” o “custo” a ser pago por essa autonomia. Em reação a tal “vacuidade”, sentida pelos artistas de vanguarda da virada do século XIX para o século XX como uma traição à arte, os movimentos de vanguarda assumiram uma postura de destruição da arte autônoma, através de trabalhos e eventos que procurassem afirmar o primado da unidade arte-vida como intento fundamental (p.46-7).
Como indica Heywood, para Bürger a vanguarda falhou em sua tentativa de destruição da arte, visto que trabalhos que se punham antiteticamente em relação ao mercado e às tradições findaram sendo cotados por altas cifras, além de terem sido saudados pela crítica e eventualmente exibidos em importantes galerias e museus. Por outro lado, apesar do seu fracasso, as vanguardas mudaram significativamente a fisionomia da arte na Europa e nos EUA (1997).
Entre outros aspectos, esse fato tornou visível a consideração da arte como instituição social, com sérias conseqüências para a arte e a possibilidade de se formular uma proposição científico-social crítica da mesma. Ademais, mostrou a ineficácia política e social da arte na sociedade burguesa. Gerou um pluralismo estético e abriu espaço para um novo tipo de objeto artístico: a obra de arte inorgânica (1997).
Seguindo mais de perto os argumentos de Bürger, pode-se perceber que sua tese central é a de que devemos nos deslocar de um campo de visão dos movimentos de vanguarda baseado em avaliações de tipo negativas ou positivas, para uma percepção desses movimentos em termos de sua transgressão face à instituição arte. Seu modelo teórico, portanto, visa articular a interpretação histórica com o estudo sistemático do campo em pauta (sd, p.16-7).
Neste ponto, ele põe em cheque o caráter absolutista da tradição sob uma hermenêutica convencional, ao considerar que a ela falta o entendimento do presente histórico como instância de motivação e guia do processo interpretativo, o que a leva a ignorar as contradições e divisões presentes no interior da própria sociedade. A questão fundamental para o autor é que uma sociedade de classes não pode dispor de um ponto de vista universal, o que impossibilita ao intérprete assumir tal perspectiva. Com efeito, uma hermenêutica crítica fica idêntica a uma crítica da ideologia, na medida em que o olhar sobre a tradição ou terá o ponto de vista do opressor ou do oprimido (HEYWOOD, 1997, p.53-4).
De fato, Bürger assevera que uma hermenêutica crítica, não submetida a uma simples “legitimação das tradições”, será “substituída pela crítica da ideologia”.
Neste ponto, o autor dá inicio à discussão a propósito da historicização das categorias estéticas. Para ele, podem-se investigar objetos artísticos à parte da história, mas o mesmo não é possível para com as teorias estéticas. Estas traduzem a marca de uma época (BÜRGER, 1993, p.43).
Com esse argumento, Bürger vê no projeto de arte-vida das vanguardas históricas o momento crucial de desfetichização dos objetos estéticos que, em todo caso, se esgotou no próprio movimento, na medida em que tais manifestações são absorvidas e logo fetichizadas pelo sistema de arte, transformando-se em obras de grande valorização mercantil e cultuação estética. É seguindo este raciocínio que o autor não percebe outro mecanismo que não o de uma re-auratização do objeto artístico na neovanguarda, em termos do que se poderia chamar de uma reprodução pacífica de moda daquela antiarte histórica, como que por uma mera pastichização dos intentos da vanguarda histórica. Isso é revelador, em certo sentido, de uma limitação no ponto de vista alimentado pelo autor.
Ora, é justamente em relação à questão da fetichização que parece se encontrar uma das chaves para o entendimento não apenas das vanguardas históricas, mas, também, da potencialidade crítica das neovanguardas. Quer dizer, é justamente em consideração à relação entre vanguardas e cultura de massa que parece existir o que Huyssen (1997) chama de “dialética oculta”. Outra chave fundamental para o entendimento do declínio das vanguardas e da posterior emergência das neovanguardas é a que possibilita estabelecer tal discussão à luz da crise da modernidade e o surgimento da pós-modernidade. Infelizmente, essas são questões às quais não teríamos espaço para discussão neste ensaio.
Por outro lado, caso se queira refletir um caminho efetivo de estruturação de um campo artístico a partir da ruptura modernista com o academicismo oficial, pode-se recorrer a Bourdieu (1996), que apresenta, no seu As Regras da Arte, uma questão fundamental para se pensar o processo genético de constituição da autonomia estética. Para ele, tal processo se deu por uma virada reflexiva e crítica que os produtores assumem sobre o que eles mesmos produzem. Isso os levou a especificar princípios e pressupostos próprios à sua produção que, por seu turno, querendo se apresentar como autonomia do campo, de sua produção e de sua recepção, manifestam-se como ruptura para com as “exigências exteriores” e para com os que a seguem e como afirmação da “forma sobre a função” e do “modo de
representação sobre o objeto da representação”. Uma segunda razão da virada crítico-reflexiva da arte sobre si mesma estaria motivada pelo fato da especificidade do campo de produção gerar as condições de “circularidade” e “reversibilidade” das relações de sua própria produção e consumo (p.337-9).
Caberia aqui tomar como referência última os ensinamentos de Francastel (1973), que procura reconhecer a legitimidade do conhecimento produzido com o estudo das imagens e dos objetos, desde um ponto em que não se os confunda. Em outras palavras, o autor parece indicar o caminho de uma abordagem estrutural baseada na homologia entre a estrutura da obra artística e a estrutura social, quando assinala que, diante do objeto figurativo, que nessa definição deve ser apreendido como objeto de civilização, deparamo-nos com “um vasto domínio que reproduz, de certa forma, na sua complexidade, a textura das sociedades” (p.25-6).
Por fim, Francastel vai fazer referência ao caráter de duplicidade da arte, cujo significado pode representar para um dado grupo a função de “memória”, ou de“projeto”; ambos, não sendo propriamente excludentes entre si, se apresentam como expressão da autonomia “entre as atividades comuns da sociedade”. Sua afirmação está ancorada numa obviedade: a de que o sentido dos objetos criados pelos homens encontra-se vinculado às suas atividades socializadas.
Contudo, para ele, o duplo sentido em que os objetos figurativos são criados é o da “manutenção das estruturas” mantenedoras da sociedade, ou a “antecipação de outras estruturas que integram as atividades de um grupo à experiência pessoal de um indivíduo”. Por outras palavras, a arte pode atuar segundo um parâmetro de coesão, ou dissociação social. Com efeito, a arte se manifesta, simultaneamente, tanto em nível concreto quanto abstrato: seja realizando “objetos representativos das crenças mais sólidas de um grupo”, seja criando “esquemas de representação imaginários” (p.29-30).
Neste ponto, vislumbro pessoalmente a inocuidade de quaisquer reivindicações de coerência na arte, sobretudo hoje, quando o acesso às novas tecnologias tem possibilitado uma incomensurável expansão do objeto artístico, em termos do que os críticos caracterizam como uma verdadeira sinergia de linguagens e tendências. Outra questão importante na revelação da impropriedade do sentido de coerência na arte se refere ao caráter universalista que esse valor traduz. Elemento esse que nos remete ao início deste ensaio, no tocante à discussão sobre o essencialismo na arte. Algo que caberia ser discutido, se houvesse espaço, é o problema da mímesis como legado fundamental na história da arte no Ocidente, mas isso fica como pauta para outro momento.
Bibliografia
BECKER, Howard (1982), Art worlds. Berkeley e Los Angeles, University of California Press.
BOURDIEU, Pierre (1996). As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Companhia das Letras.
_____________ (2007). A Distinção: critica social do julgamento. São Paulo, Edusp/Porto Alegre, Zouk.
BÜRGER, Peter (1993), Teoria da Vanguarda. Lisboa, Vega.
FRANCASTEL, Pierre (1973). A Realidade Figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo, Perspectiva/EDUSP.
GOODMAN, Nelson (1978). Modos de Fazer Mundos. Porto, Edições ASA.
HEYWOOD, Ian (1997), Social Theories of Art: a critique. New York/Washington Square, New York University Press.