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Menos do que uma resposta, algumas poucas notas (entre outras várias possíveis):
1. A questão da coerência deve, a meu ver, ser deslocada da poética para a ética da produção. Nesse sentido, ser coerente com o processo criativo pode implicar, em certas situações, abandonar traços característicos de uma produção anterior e consagrada.
2. A busca por essa coerência (ou essa criação feita contra o próprio passado) é, porém, muitas vezes sabotada por instituições artísticas acomodadas e por um mercado de arte que visa o lucro imediato; que rejeitam, por ignorância e aversão ao risco, a irrupção do novo, abrigando-se no conforto do conhecido e do testado. Nesse sentido, a força entrópica que toda invenção artística carrega é contraposta à força conservadora, que busca preservar um mundo ordenado sob convenções que
já não o suportam mais.
3. Se existe cobrança por coerência, portanto, ela é invocada principalmente pelos agenciadores institucionais e econômicos da produção artística já bem colocada no mercado. Para estes agenciadores, é mais cômodo e fácil colecionar e vender o decodificado e consagrado, do que aquilo que resiste a classificações fáceis e que desarruma hierarquias engessadas. No âmbito da valoração simbólica e mercantil de obras artísticas, o novo – a despeito da mítica que o embala – é tratado mais como descendência, do que como invenção, ou, parafraseando Deleuze, mais como ramo de árvore, do que como erva que surge do nada.
4. Quando (e se) críticos e curadores prestam mais atenção na suposta coerência da produção de artistas contemporâneos, em relação àquela feita por eles e por outros no passado, do que nas articulações desorientadoras que porventura esboçam agora, estão olhando menos para um trabalho em progresso e mais, por preguiça, ou pura incapacidade de enxergar, para uma obra que julgam,
erroneamente, estar já acabada.
5. Quando (e se) críticos e curadores buscam a todo custo identificar elementos de ruptura na produção de artistas contemporâneos, porém descuidam de identificar elementos de continuidade e de afirmação desta produção em relação a uma história artística pregressa (destes e de seus pares), estão cedendo ao desejo impossível de livrar-se do passado.
6. Não custa nada lembrar a definição genial de Godard para cultura e arte, na qual a primeira se impõe como regra e a segunda sempre como sua irredutível exceção. E também não custa repetir a obstinação criativa de Beckett, segundo quem a cada fracasso de algo sucede uma nova tentativa e, como resultado, um fracasso ainda melhor. Se há relação entre arte e coerência, talvez estas sejam boas pistas de onde encontrá-la.