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Para além das motivações ideológicas e, sobretudo, religiosas, que fizeram renascer e reverberar essa idéia criacionista da vida – e que, portanto, precisam ser consideradas numa contextualização desse ressurgimento – interessa-me a constatação de sua persistência, mesmo face à ampla difusão de teorias a ela contrárias. Pesa enfaticamente, para a perpetuação dessas concepções, a crença – herdada de Platão e ainda lugar-comum – de que a ordem é superior à desordem, sendo a primeira uma virtude e a segunda, um distúrbio. Neste sentido, as variações seriam consideradas ‘inferiores’ diante das essências que, entendidas como próximas da ‘verdade’ e da ‘perfeição’, por sua vez encontrariam, na natureza, metáfora apropriada: aquilo que se distanciasse de seu estado ‘natural’, estaria, assim, cada vez mais potencialmente deturpado, doente.
Mesmo após os esforços de Darwin – cujas teorias da evolução e seleção natural evidenciaram a inexistência e a impossibilidade de perenidade na natureza, apontando sua ininterrupta dinâmica de transformação – modelos culturais ordenadores enxergaram virtude e, portanto, hierarquia, não no ‘começo’, mas no ‘fim’ das dinâmicas transformadoras da vida, correlacionando, numa leitura distraída da obra darwiniana, evolução e progresso. Assim, deslocando o ideal de perfeição existencial da ‘origem’ ao ‘destino’ da vida, foi tomado como metáfora o ‘processo evolutivo’ humano, por tal ótica entendido como um percurso linear e progressivo da natureza à cultura.
Nesse modelo pós-darwiniano, mesmo que assimilada a mudança como elemento fundante da existência, há ainda pouco espaço para a mutação e seus dissensos, visto que esta, de ilógica que é, não obedece à idéia de progresso. Desta forma, o espaço para a incorporação do acaso na dimensão evolutiva – já bastante indicado em Darwin e enfaticamente corroborado nas teorias modernas da evolução – que faz tender ao zero a possibilidade de traçar uma lógica generalizável e hierárquica aos processos de transformação dos seres e ecossistemas, apenas inicia sua legitimação expandida, estando ainda distante dos debates corriqueiros acerca das dinâmicas existenciais nos seres vivos, como demonstra o ressurgimento criacionista norte-americano.
A concepção de vida entendida em desvínculo de quaisquer pré, ou pós-determinações – para a qual concorre o reconhecimento do protagonismo da contingência existencial em toda sua crueza e urgência – apesar de encontrar amplo respaldo biológico, desafia cotidianamente a cultura ocidental que, ainda intensamente pautada pelos modelos evolutivos ordenadores como forma de atribuir sentido às frenéticas transformações que vivencia, constrói-se pouco afeita ao descontrole senão como exceção (erro). Encontrando sentido evolutivo em nossas mudanças por acreditar que a natureza não opera também por excesso ou sorte, mas unicamente através de uma lógica funcionalista de sobrevivência que tudo reduz ao essencial (adaptação), construímos nossas vidas em torno de pensamentos como o ‘nada acontece por acaso’, o que, em última instância, faz ver a crença (ainda que tácita) de um controle geral e ordenador sobre a vida. Assim, tendemos a escantear o descontrole. Na arte, inclusive.
Ainda que o século XX tenha testemunhado uma arte que, conscientemente, evocou o inconsciente e o acaso – como o fizeram os surrealistas e dadaístas – ele também foi cúmplice do esforço geral de desconstruir a imagem do artista como ser inspirado por forças a ele estranhas, buscando desfazer a aura de genialidade que, todavia, ainda hoje perpassa a produção em arte. A adoção do termo ‘produção’ em referência à criação da obra – por sua vez compreendida como ‘trabalho’ –, ápice linguístico dessa transformação paradigmática acerca da concepção de arte (e de artista), denota o caminho racionalizador percorrido pela arte ao longo do século XX que, por fim, encerrou-se menos com os chamados do inconsciente com os quais se iniciara, e mais com preocupações conceituais, metalingüísticas e, inclusive, socialmente relacionais. O artista, portanto, retomou o ‘controle de si’ e, obviamente, de suas idéias e obras que, não tendo mais uma ‘origem’ perfeita e intocável (criacionismo, essencialismo, inspiração), hoje teriam, contudo, ‘missão evolutiva’ diante do campo da arte e da sociedade (variação, adaptação, progresso). O descontrole de uma deriva genética aleatória (gatilho das mutações ao acaso) e a observação de Darwin de que a seleção natural não tem propósito, ou direção (nem mesmo a sobrevivência da espécie) – ou seja, a incorporação de aspectos de aleatoriedade existencial – encontram ainda pouco espaço nas corriqueiras concepções de arte.
O escanteio do descontrole – existente em grande parte da produção dos artistas de hoje e endossado por um sistema da arte que demanda margens de segurança para operar suas dinâmicas legitimadoras – reverte-se na crença do domínio do artista sobre sua criação, para a qual corrobora a idéia de ‘poética’, intensamente difundida nas últimas décadas do século passado e cuja presença no âmbito da teoria da arte potencializa uma expectativa de ‘coerência’ da produção artística que, outrora – quando, por exemplo, entendida em suas ‘fases’, ou ‘estilos’ – esteve atenuada.
No corrente constructo social de artista como aquele cujo trabalho gera produtos (obras) que estão sob seu domínio de consciência – ainda que passíveis de serem semanticamente recombinados a partir do olhar do outro – toda ‘matéria’ utilizada na arte tende a figurar de modo funcionalista, posta à disposição da ação ‘poderosa’ (e, por vezes, autoritária) do artista, cada vez mais voltado a lógicas de agenciamento e articulação que, em sua trajetória de desenvolvimento, vão construindo um corpo
comumente ‘coerente’, marcado pela sobreposição de camadas de significação. Nesse sentido, operando por agenciamento, a arte se torna crescentemente mais racional. E, ao adotar um procedimento criativo comum ao cotidiano (re-criação do mundo a partir da articulação de elementos nele já disponíveis), torna-se inclusive mais ‘social’ e funcional, como sinaliza a proliferação das “questões” – da mulher, do corpo, da violência, do espaço, etc. – pela arte abordadas.
Parece-me evidente que, diante de tal contexto de exploração da faceta racional da arte, haja cada vez menos espaço para o surgimento do descontrole. Ainda que Darwin tenha demonstrado a importância da deriva para a evolução dos seres vivos, nossa cultura tende a abafar as possibilidades mutacionais do ser e das coisas. A arte, domesticada pela cultura e sua lógica interna de evolução por superação, encorpa o sentido de ‘coerência’ do mundo ao lidar com ele de modo funcionalista, visando, mesmo no campo do simbólico, a sobrevivência por meio da adaptação do ser ao ambiente – daí, talvez, a recente proliferação da ‘re-articulação do mundo’ como estratégia construtiva na arte e sua relação utilitarista com o campo das idéias.
Edgar Morin, entretanto, propõe [1] que reconheçamos “a soberania e a dependência das idéias, seu poder e sua debilidade”. Segundo o autor, as idéias, dotadas de poder de auto-eco-organização, são não apenas ‘produtos’, mas produtoras de nós. O autor defende a concepção de noosfera, habitat das idéias, por onde elas circulam autonomamente, copulando entre si e gerando entes outros, distantes do controle humano, mas que, ainda assim, nos influenciam. Sua noosfera reconfigura o ‘mundo das idéias’ de Platão, propondo um modelo desordenador, sem princípio essencial, ou fim evolutivo e que, por sua vez, está em consonância com as modernas teorias da evolução que sinalizam a vulnerabilidade dos seres diante da aleatoriedade, ou anti-economia não só de sua ontogenia, como, mormente, do movimento evolutivo de sua população como um todo.
Assim, considerando a realidade de uma noosfera, assume a possibilidade de não-autonomia do ser diante de seu pensamento – no caso específico da arte, o não-domínio do artista sobre sua criação, a impossibilidade de manter sob controle sua obra não a partir de uma explicação imanente, ou transcendente (como em certa medida o fez a cultura renascentista, por exemplo), mas absolutamente contingente: as idéias, matéria da forma e da arte, têm vida própria. E, assim, lidando com as idéias de modo não-funcionalista – elas nos servem tanto quanto a elas servimos – Morin assimila um modelo existencial não-hierárquico e retroativo, sem ‘origem’, ou ‘destino’, e no qual, em sua radicalidade, não cabe, portanto, a insistência na demanda por ‘coerência’, ainda que esta possa ser percebida, voluntária, ou conseqüentemente surgida.
Nossa cultura, entretanto, não possui, ao que me parece, suficientes ‘estruturas cognitivas’ capazes de dar conta da ‘deriva genética aleatória’ do pensamento humano, habitualmente entendido, quando assim procedendo, como nonsense, provocador de estranhamento, ou quaisquer outros rótulos (como ‘incoerência’) que mais sinalizam uma não-adaptação aos padrões culturais corriqueiros, do que a possibilidade de instauração de um padrão outro. Mesmo que a biologia, a filosofia, ou os ‘fatos’ apontem para a tendência à complexificação do mundo, ainda nos faltam aparatos cognitivos e culturais para lidar com a vida em complexidade. Mesmo que saibamos que a natureza também opera em saltos, permanecemos adesivados a uma lógica ‘evolucionista’ linear da vida.
No campo da arte, a crítica, a curadoria e a teoria da arte em geral demonstram equivalente dificuldade. Eminentemente sistematizadoras e normalmente pouco íntimas dos processos criativos e seus aspectos de deriva, essas instâncias, não sabendo como lidar com as mutações genéticas’ da arte, apostam em discursos que atribuem sentido à produção artística com base em ‘critérios’ ordenadores – dentre eles, a coerência. E, assim, o descontrole e a autonomia das idéias em seus delírios criativos vão sendo crescentemente escanteados também na arte. E então, diante de cobranças por coerência, faz-se presente o perigo do retorno, mesmo que inconsciente, ao essencialismo em seu pavor pela variação e pelo desvio, tratado como distanciamento da perfeição.
Ainda que a força entrópica – e de resistência – como é habitual, se concentre em indivíduos isolados, configurando-se como exceção, temos a sorte de, no campo da cultura e da arte, incorporá-la de forma variada. Se a biologia aponta que a ontogenia de um indivíduo não pode ser considerada evolução – evolutivas são aquelas mudanças populacionais que podem ser herdadas via material genético, de uma geração para a outra – na arte essa regra se desfaz e ações individuais podem reverberar para além de sua incorporação cromossômica, como ocorre com as idéias na noosfera. É que elas, as teimosas idéias, são – já diria Morin – certamente menos biodegradáveis que o homem e, cientes disso, sustentam suas “incoerências” com mais afinco. O criacionismo que o diga.
[1] — MORIN, Edgar. O método 4, as idéias. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.