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Acredito que subordinar o processo criativo ao crivo da coerência é o ápice da incoerência. Estabelecer limites através da exigência de manutenção de um estilo cerceia a possibilidade da invenção inerente à arte.
A crítica, os curadores, o mercado de arte, cada qual ao seu modo, reiteram o discurso sobre a coerência poética do artista pautada na maturidade e profissionalismo em seu percurso de produção. O problema é que tal discurso se baseia em uma lógica de progresso oriundo de um aprofundamento do artista acerca de seu trabalho. O risco gritante que percebo em tais operações é a redução do potencial poético que cada trabalho é, em si, enquanto sintaxe, a um evolucionismo da obra do artista ao longo do tempo. Ora, no meu ponto de vista essa é uma visão que, ao contrapor profundidade à superfície, cria níveis hierárquicos verticais em um campo de força que, ao contrário, se expande horizontalmente. Não acredito, portanto, no percurso da obra como progresso, mas, sim, no processo de inventividade constante. Nessa perspectiva, o entendimento da obra deve ser redimensionado sem sujeitar-se a nexos forjados e aproximações deturpadoras entre uma situação e outra, na tentativa de impor um norte sobre a obra do artista através de um evolucionismo tacanho que não é outra coisa senão mero subterfúgio retórico alheio à própria potência da arte.
Por outro lado, é evidente que todas as obras de um artista dialogam entre si, mesmo que seja um diálogo conduzido pela diferença.
Na modernidade, constatamos uma infinidade de artistas que criaram uma identidade a partir de uma produção pautada pela repetição de formas e fórmulas, indicando, assim, uma linha poética harmônica que percorre as obras dos artistas por décadas. Cada qual com sua determinada preocupação plástica-poética muitas vezes autônoma e confinada sobre si mesma.
Certamente a repetição pode e deve abrir fissuras. “Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo”, como sugere Manoel de Barros. E, as técnicas de respiração circular dos orientais, que possibilitaram, para os músicos,estender a duração do som. E, a criação do loop graças a um erro de gravação. E, mais recentemente, a repetição do sample. E, os Dervixes Giradores da Ordem Sufi Mevlevi. E, a história de Muskil Gusha, contadas todas as quintas-feiras em todo o mundo. E, os 100 metrônomos de György Ligeti. E, as óperas minimalistas de Philip Glass. E, nas palavras de Daniel Buren, “A repetição que nos interessa é um método, e não um tique; é uma repetição com diferenças. Podemos até dizer que são essas diferenças que fazem a repetição, e que não se trata de fazer o mesmo para dizer que é idêntico ao precedente, o que é uma tautologia, mas sim de uma repetição de diferenças objetivando um mesmo”. A aparente aridez da repetição se substancia a cada dobra, a cada volta na agulha um pequeno ruído insurge.
O problema que estou apontando é de outra natureza. Não está na repetição ad infinitum, mas, sim, no desejo de fixar, de forma tão precisa, tal linha poética a partir de uma unidade estrutural. É de fato um desejo da obra? Ou seria um desejo autoritário do artista que não ouve a própria obra? É uma necessidade do trabalho? Ou são estratégias de um mercado perverso e de uma crítica de arte com objetos de pesquisa extremamente específicos, pré-determinados? Essa unidade encorpa a pesquisa? Ela se faz necessária? Existe? Ou é garantida por práticas curatoriais enrijecidas a ponto de se machucarem com qualquer farpa que escape da homogeneidade e previsibilidade? E quando escapa – ótimo que escape – é sinal de ameaça? Para quem?
São operações demasiadamente sutis pelo simples fato de se situarem em um sistema que atua por modulações cambiantes. Sistema esse que incessantemente anula, ou, ainda mais agravante, captura as forças que escapam, convertendo-asem motriz legitimadora de sua onipotência. É por fagocitose que o sistema opera. E esse é justamente um dos motivos pelo qual a produção de um artista não pode ser “coerente” ao longo dos anos. Refiro-me ao termo coerência no sentido de uma âncora fixa e visível que situe todos os trabalhos sob um mesmo prisma ditado de forma ideológica. Não, um trabalho de arte, no meu ponto de vista, não pode ser um campo definido a priori. Um trabalho não pode ser estável, pois a vida assim não é. Coisas em repouso por muito tempo gangrenam, atrofiam, tornam-se
estéreis, à semelhança de boa parte da produção de arte no país – seja por parte da crítica, que muitas vezes não se debruça sobre o que pesquisa e esvazia conceitos através de discursos recheados de clichês, seja pela escassez de políticas públicas menos comprometidas com “responsabilidades sociais politicamente corretas”, seja pelo deslumbre dos artistas com as cifras crescentes do mercado.
A conversão em artigos decorativos daquilo que irrompeu como força desestabilizadora é fator circunstancial para pensarmos outro aspecto, a questão referente ao lugar da obra. A direção de condutas operada pelos sistemas, qualquer seja, requer atenção redobrada. Tais condutas são impostas ideologicamente ou emergem a partir da empiria no interior do sistema? Prima facie penso em uma soberania do sistema que dita as normas do jogo antes mesmo do apito inicial ser
efetuado. Porém, parece-me que a operação ocorre através de outros estratagemas. As farpas que desgarram são rapidamente absorvidas, convertidas em acessórios e incluídas como parte integrante do jogo – tais dispositivos são criados ao longo da partida. Operação assegurada graças à flexibilidade da regulamentação, na qual pode tudo, desde que… O exemplo mais recente para ilustrar tal procedimento é a situação do grafite. A revista da Folha de 27 de julho de 2008 apresenta como matéria central a “discussão” em torno do grafite. O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, convocou recentemente os grafiteiros osgêmeos para uma reunião com o intuito de “pedidos de desculpa” por conta do apagamento de alguns grafites da dupla e de outros grafiteiros na cidade. A sugestão do secretário Andrea Matarazzo é a de criar uma lista de locais reservados a pinturas do gênero. “Com essa lista em mãos, podemos controlar melhor os espaços que vão ou não ser pintados” (…) “o grafite de São Paulo é muito bonito, tem cores e desenhos muito interessantes”.
Há alguns anos, no Rio de Janeiro, discurso semelhante esteve em pauta. Tratava-se da construção da Cidade do Sexo. Recordo-me dos elogios do prefeito Cesar Maia ao projeto do arquiteto Igor de Vetyemy, que consistia na criação de um espaço com estudos educativos sobre práticas sexuais, comércio ligado a objetos e ao tema da sexualidade, museu do sexo, área médica e cabines para, mediante pagamento, a realização do ato sexual.
Estes são apenas exemplos isolados dentre milhares de situações que poderiam ser citadas. Em ambos, percebemos a inclusão das diferenças com o intuito de amortizar suas singularidades. Seja a manifestação “marginal” do grafite reduzida a artigo de decoração, controlado, na cidade – e nem entrarei no mérito de discutir a legitimação dessa prática garantida pelo sistema da arte – ou, no segundo caso, na produção de sexualidade através de uma Cidade do Sexo… Gerido.
Incoerência entre o discurso e o ato?
Mediante esse tipo de dispositivo, eu insisto em perguntar onde é o lugar da obra? Ela tem um lugar? Ou irrompe nessas fricções não mapeadas? Esse lugar existe? Ou é preciso ser criado? E de que forma criar? É ela, a obra, em si um lugar?
Acredito no caráter totêmico da situação-obra, que age por várias frentes, que desmantela por vários canais, que coloca uma sujeirinha bem lá no meio… No campo invisível. Antes de tudo, a relação com a obra deve ser coerente com as forças que a trespassam. O potencial de mudança da obra reside em um campo não visível, como os totens, tóxicos. O que pode a obra é desconhecido; situa-se no “ar”, esperando um ninho para pousar. É tal pouso que produz efeito no ninho a ponto de fazê-lo esvoaçar. É isso que entendo como dimensão política de uma obra e é nesse ponto que talvez seja possível falar em coerência da obra com as forças das quais ela irrompeu e, muito mais que isso, do potencial que ela é na relação experimentada. Não se pretende, penso eu, mudar toda a lógica de um sistema através de um trabalho. Já nos anos 1960 -70, em meio à ditadura, artistas como Cildo Meireles realizavam ações simbólicas que visivelmente não aspiravam ter a dimensão macropolítica dos movimentos sociais. Através de operações mais sutis – por exemplo, as Inserções em circuitos ideológicos – giravam a chave de alguns mecanismos e com isso possibilitavam a proliferação de pequenos levantes, curtos- circuitos.
Estes artistas, no meu entendimento, não pretendiam ocupar o lugar do poder. A resistência não almeja tomar o poder, justamente por saber que quando isso ocorre perde-se a potência. É saudável que se crie movimentos de trânsito e derivas extraterritoriais – termo cunhado por Brian Holmes e trabalhado por Suely Rolnik em seu texto “Memória do corpo contamina museu” – que façam com que o centro perca tanto as referências, quanto a possibilidade de permanecer enquanto foco. Tais movimentos não têm absolutamente nada a ver com êxodo. Não significa fugir do problema. Consiste, inversamente, em criar rebuliços nas estruturas que desvitalizam e homogeneízam as formas de vida.
Pois bem, estamos na era do Botox, dos seios duros, siliconados, do rosto espichado pelas plásticas e pelo photoshop, todavia, dentro das condições apresentadas, percebemos o oposto. Até mesmo as arapucas não são rígidas. Por esse motivo a virulência do trabalho pode estar em sua maleabilidade. Caso contrário, corre-se o sério risco de, através da manutenção da poética em detrimento de um processo de inventividade, operarmos com as armas erradas e, com isso, o trabalho findar como mimeses defasadas de operações extremamente deslocadas da experiência sensível que forçou a criação da obra.
É delicado tecer um pensamento sobre essas questões, pois o risco de generalizá-las é constante. Não quero aqui imprimir um juízo de valor sobre os métodos de trabalho, ou práticas de cada artista. Sei que muitas vezes a repetição é condizente com as necessidades vitais do trabalho – ou é o próprio trabalho – e admiro a produção de muitos artistas que trabalham dessa maneira. Isso não quer dizer que são piores ou melhores do que aqueles que agem de outro modo. Os métodos de trabalho são diversos. Reforço: não pretendo estabelecer padrões, modelos e graus de qualidade na forma de atuar. Proponho vasculharmos a genealogia dessas práticas. Levanto essa interrogação por conhecer artistas que, devido a meses de trabalhos encomendados, têm seu campo de experimentação limitado, uma produção ecolálica regida pela lógica do mercado.
Tal prática vale para alguns críticos e/ou curadores que aplicam na obra dos artistas aquilo que acabaram de ler. Por isso a febre de Rizomas, de Cartografias, de Devires, de Líquidos, de Estados de Exceção… O que pode ser ótimo quando é condizente com a obra e a potencializa. Caso contrário, não: é incoerência, é impermeabilidade. Utilizam as obras para ilustrarem teses que nem sequer são deles.
O mesmo é pertinente para os artistas que não têm tal linha poética visivelmente demarcada. Os trabalhos podem ser constantes insights desprovidos de pensamento. Mera fabricação de objetos, à maneira da produção de bens de consumo, na tentativa de introduzir nas obras elementos das mais “novas tendências”.
O problema é que cada vez mais os artistas “trabalham” incessantemente e esquecem que é preciso deixar de ser artista para ser artista. A social nos vernissages, as noites de padê, o dinheiro, os contatos, as roupas de grife, as baladas descoladas, as trepadas bem-sucedidas… Tudo está agregado à construção da obra.
Dentro dessas condições essas palavras perigam serem apenas palavras – algo qualquer que não lateja. Mas vai que elas encontram seus ninhos e aí…