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Tatuí | Na discussão sobre forma, muitas vezes chegamos numa aparente “encruzilhada da forma”, do pensamento formal e do interesse da forma fora do campo da arte, desespecializada. Às vezes, vemos críticos não se interessarem mais pela forma quando ela se coloca para além do campo da arte ou, especialmente, da história da arte ocidental. Então, esse lugar de uma preocupação, de um pensamento, de uma sensibilidade formal fora da restrita “chave da arte”, ou da história da arte ou da teoria da arte – de uma genealogia artística da forma –, é talvez um problema para nós. Um problema instigante, que nos retira de uma lógica internalista. Como seu trabalho tem um processo formal completamente implicado na dimensão sociocultural, me parece que você coloca a forma em outro lugar, um lugar que também se deseja para além da arte. Queria que você comentasse isso. Como que a forma, ou não, te interessa na vida? Onde e como ela está? – para além da história da arte, do modernismo, do que quer que seja…
Eduardo Frota|Essa sua primeira pergunta é estrutural e penso que vou respondê-la em todas as perguntas no decorrer da entrevista, mas vamos começar pelo início. Quando eu cheguei ao Rio, tive esse impacto de uma cidade histórica em que sua produção, mal ou bem, se fazia entre parâmetros pré-estabelecidos, numa incipiente e mal alinhavada história da arte do modernismo de 22 pra cá, da produção da cidade e do país, mas por isso mesmo, por uma necessidade de se fazer construir como categoria do pensamento da arte e da cultura do Brasil, dentro de certos cânones historicizados da arte ocidental. Com isso, a margem de manobra inclusiva era muito restrita. Basta pensarmos que no final dos anos 70 e início dos 80, a produção da década de 70 pós-vanguardas neoconstrutivas estava sublimada em detrimento da volta esfuziante e frívola da pintura como quase totalidade das linguagens artísticas daquela nascente década. Também naquele momento, como um contraponto histórico, a então recente tradição das vanguardas construtivas volta como valor ideologizado para a atualização de um programa pós-modernista, com todos os paradoxos que esse termo dividirá com o movimento internacional da volta da pintura, robustecida e recodificada através do novo mercado de arte neoliberal e financista por excelência. No Rio daquela época, atuar fora desse contexto era muito complicado. Havia uma insistência quase cruel de já se fazer parte de uma história. Com isso, penso que muita coisa boa morreu na praia, e aponta para um problema grave do Brasil institucional até hoje: ele é conservador, patrimonialista e amplamente excludente.
Quando passei no vestibular para a Escola de Belas Artes da UFRJ, fiquei somente dois meses no curso e abandonei pra sempre. Também saí dos cursos do Parque Lage quando se desenhava o movimento da geração 80. Em ambas as instituições não enxergava qualquer natureza de conflito, era uma festa só. Não podia entender todo aquele movimento festivo, quase um entretenimento na produção da arte. Naquele terreno sem conflito, eu estava cheio deles – porque deixei amigos e um sonho feliz de cidade, me desentendi com parte da família, e me larguei pro Rio de Janeiro. Tudo tinha uma proporção diferente, e se encarnava em mim que fazer arte era radical e amplamente uma experiência de vida, de deslocamentos físicos, culturais, psicológicos, espirituais e assim por diante. Mas para não fugir o interesse da sua pergunta, termino esta com outra pergunta – e o que isso tem a ver com a forma? Tudo. Voltei-me para casa numa experiência solitária do desenho como construção sensível do sujeito artista.
Saindo dos primeiros questionamentos e ampliando o conhecimento histórico e teórico da arte, é fato que dois dados importantes vão me dar condições de participar do circuito da arte, inicialmente na cidade do Rio de Janeiro – a própria cidade do Rio de Janeiro como um campo formador da experiência artística e o conhecimento da produção de todos os neoconstrutivos e, principalmente, a Linha orgânica de Lygia Clark para mim um dos conceitos mais fecundos não só da arte brasileira, mas da arte ocidental dos anos 50 pra cá. Conhecer essa ideia, essa matriz conceitual fecunda foi o norte e guia da minha produção inicial, desde as primeiras verticais expostas no Programa da Galeria Macunaíma, da Funarte, na coletiva Rio Hoje (MAM-RJ e Centro Cultural São Paulo). Não quero me deter em alguns trabalhos, porque acho que é reduzir a questão, mas falar da inflexão que essa ideia provocou propositivamente em mim. Mais do que uma aproximação, o entendimento da Linha orgânica de Lygia Clark teve a importância de me permitir fugir dessa questão estritamente dogmática de exercícios geométricos formais e redundantes, que não inflexionam uma subjetividade para além do campo da arte, ou seja, o valor social, político e econômico do trabalho na sua construção material, que provoque atritos através de uma produção em constantes tangenciamentos com vários outros campos de conhecimentos produtivos, materiais e teóricos, como a sociologia, a economia, a antropologia, a educação e a psicologia social. Do entendimento amplo e desmedido da forma em processo contínuo, tendo na construção material/escultórica da linha suas extensividades físicas a invadir espaços da arquitetura, ampliando o entre dos planos virtuais de origem, veio que o conceito/produção da série Intervenções Extensivas que invadiu espaços pelo Brasil afora (Torreão – Porto Alegre, 2000; MAC Dragão do Mar – Fortaleza; CCBB SP, 2003; Fundação Joaquim Nabuco – PE, 2002; CCBB – Brasília, 2004; entre outros). É o exemplo mais agudo dessa linha dilatada como tubos condutores, vasos comunicantes, que expande e adensa não somente relações simbólicas da produção da arte com o lugar instituído da arquitetura, como também a produção em atrito com o mundo social e político da arte e da cultura.
Tatuí | Mas o que você está chamando de forma quando diz que a Linha orgânica leva para a fuga, para fora da fuga, para além da fuga?
EF| A Linha orgânica leva para outras possibilidades de desdobramentos, de invenção, e isso é fecundo porque ela foi uma abertura imensa para gerações como a minha e outras que vieram depois; e continua até hoje… Penso que ela desregularizou processos, deu vida onde não se imaginava que tinha, fez respirar vísceras e atomizou os planos antes definidamente construídos, canalizou energias profundas e propulsoras para novas inteligências. Deu um amálgama de sofisticada intuição para a produção da arte no Brasil. É essa invenção que penso ser o ponto zero da arte contemporânea brasileira. E quebrou de vez a matriz cartesiana.
Tatuí | Acho que tenho, talvez, uma compreensão diferente de forma porque, pra mim, é a partir da Linha orgânica que você começa a chegar num pensamento da forma, propriamente. Quando você fala que o seu trabalho não é lido como uma questão formal ou como forma, percebo nossas diferentes concepções sobre o pensamento da forma, que para mim é o lugar mais ambíguo – porque aberto – da experiência sensível. É nesse sentido que penso a forma como a grande potência, não como algo que reduz…
EF| Você tem toda razão. E não é só o lugar que é ambíguo, a natureza mesma da ideia é prenhe de ambiguidade e é por isso que é bonita e interessante, desata o formal estereotipado. Mas também quero chamar atenção a um preconceito que no Brasil se acentuou contra uma discussão mais rica sobre a potência da forma, depois dos estudos da Gestalt, através de Mario Pedrosa, no Brasil, dos dois lados, tanto pró e contra, é um horror a mediação que se faz através de Greenberg no meio dessa história toda. Inibe e despotencializa uma discussão que poderia ser muito mais inventiva, mesmo que arriscada, mas que não fosse tão colonizada e dogmática.
A minha experiência fundamentalmente vem da linha. Quando eu fazia as verticais muito finas, aquilo tinha um reducionismo formal importante para ser um quase nada que cortasse o plano da parede ou se verticalizasse do chão para o espaço. Uma transmutação da linha reta para as linhas curvas, dando organicidade para outra expansão dela em relação ao espaço, precisou de operações inventivas de trabalhar o plano da madeira em novos cortes e repetição de módulos, desconstruindo o monólito da linha fina vertical. Essa operação desregula de vez o limite formal da minha experiência.
Tatuí | Por que você acha que estava idealizando a forma? Em que sentido?
EF| Isso foi antes dos tubulares, com os nós. Desconfiava que pudesse estar idealizando o processo formal. Não produzi quantitativamente muito desses trabalhos. Apesar de tudo, nunca fiz nenhum desenho que fosse um construtivo geométrico somente. Eu achava que a questão era o material e o corte, o corte erótico e sexual na matéria, daí o suporte em madeira e depois ele sendo a própria estrutura da linha. Daí é que eu me invento artista, quando eu saio da superfície mesmo e corto o suporte. Como disse, nunca fiz geometrismos de retórica numa superfície planar. Só que eu percebi que a linha/estrutura desses trabalhos davam nós por conta dos cortes e ela mesma se tornava borda, não estava mais entre planos, e sim despencando do plano da parede para o mundo. Foi então que pensei que poderia criar respiro dentro dessa linha/estrutura, extensiva, invadindo a arquitetura.
Digo também que em todo o meu trabalho, eu nunca abusei do volume, as pessoas entendem mal isso, penso que eles não têm excesso de volume, ou seja, o peso tradicional do volume, ou a tradicional operação escultórica clássica, o desbastamento do cubo. Nada disso. Tudo sempre é vazado, inclusive os eixos/lunetas não normativos dos carretéis, como bem lembrou Paulo Herkenhoff. Ainda sobre os nós, durante o processo de construção e colagem, percebo ter surgido um embate vertiginoso entre matéria (obra) e corpo (artista). Era um grande empenho cortar aquilo. Eu saía exausto, porque passava um dia somente para colar um trabalho, depois de mais de vinte dias construindo o mesmo. Esses cortes tinham que ser muito precisos e sua colagem idem, já que um centímetro de diferença desmontava a operação por inteiro. Eu me preparava física e psicologicamente para a sessão de colagem de tão esgotante que era. Suava muito em cima do trabalho, que retinha o suor do meu corpo adentrado na madeira… Era uma relação muito sexualizada, erótica mesmo. E o que eu entendi desse processo é que esse trabalho era essencialmente corpo!
Então eu voltei de novo com certa potência de não idealizar a forma, o que quer dizer travar um diálogo com a obra num processo a partir do corpo, não ser tão impositivo com um resultado formal. Era um embate muito visceral, de corpo, de dobras. Eu saquei essa coisa não através da teoria, mas por meio de meu esgotamento físico e mental, todo o corpo. Quando quebrei a concisão da forma a partir de um corte na grade estrutural da obra – nessas linhas de madeira maciças cilíndricas e retas com suas emendas em ângulos pontiagudos –, suas extremidades agora apartadas por um corte impositivo se apresentam de imediato como uma autonomia em expansão para o espaço.
Fiquei pensando como fazer expandir no espaço aquela operação. Peguei esse tronco, essa linha, dei uns furos – só que era madeira dura, e eu queria fazer uma curva maleável, mais orgânica, sem pontas. Então tinha que ser vísceras. Vendi meu carro para comprar material que me possibilitasse fazer uma nova tradução dessa experiência, inventar ferramentas e máquinas para equalizar operações conceituais e materiais. Cortei umas arruelas num plano de compensado industrial e com isso tive vários módulos iguais. E depois chanfrando as laterais desses módulos/arruelas, colei vários deles e consegui a soltura de linhas curvas ao infinito. Ali havia criado uma máquina de fazer vísceras porque, quando acumulava os módulos, a linha virava órgãos rastejando dentro do corpo da arquitetura. A linha/forma não tinha mais começo nem fim, e toda a operação de corte e sutura era adensamento. Ainda devo acrescentar que a unidade modular desaparecia por conta da junção anônima de milhares delas. Isso processava seu transbordamento como uma unidade física de autonomia material.
Outro dado diante dessa questão de uma forma para além da arte é minha relação com a geografia, a história, a antropologia e a experiência do corpo em deslocamento por diversas cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, a primeira imagem que vivenciei ainda quando menino foram os seus túneis urbanos. Foi um espanto! Aquilo era a experiência de outra geografia, uma topografia completamente acidentada, diferente da cidade de Fortaleza – muito plana, como que esse plano de sertão que se estende até a beira do mar. Ora, essa linha orgânica que se faz respiro em túneis no Rio de Janeiro, elas são também linhas de respiração/movimento entre o plano do sertão extensivo até Fortaleza e o plano/mar do oceano atlântico. Essas percepções de natureza e cultura construíram os meus vetores sensoriais e espaciais. De retorno ao Rio para morar, permanecia gravada em mim a imagem impactante que experimentei aos 7, 8 anos: seus túneis de ar furando monólitos de pedras e montanhas. Essas primeiras experiências no Rio, recodifiquei-as como neoconcretas pelas relações sensoriais que a geografia da cidade em mim se revelou; as intensidades de luz fora e escuridão dentro, a sonoridade acústica dos motores e olfativa dos cheiros queimados de combustíveis, tudo isso foi uma experiência sem limites. Essas experiências de geografias constroem também uma forma não reducionista de sentidos, memórias e transmutação; sol, luz, vento, horizontalidade, e pedra, furo, verticalidade. O dado geográfico como expansão do plano da paisagem engendra para mim um conceito de espacialidade afetiva e emocional, tanto da horizontalidade planar de Fortaleza, como da verticalidade física do Rio de Janeiro. Voltando às questões operativas da forma, digo que minha incisão no plano industrial é para quebrá-lo, desmontá-lo, fatiá-lo e esgarçá-lo para transverter suas partes e seus módulos cortados em círculos que vão ser colados aos milhares para a construção dessa linha extensiva e anônima, invadindo qualquer corpo/espaço arquitetural que se apresente, e ela se infiltrando como coisa viva e autônoma. Ainda devo dizer que é caro a mim desregularizar as medidas ideologizadas do plano/compensado como uma invenção da indústria objetivando um produto bem-acabado, bonito e perfeito. Essas laterais bem acabadinhas é exatamente a parte anulada do material. Elas vão ser o lado de uso da cola que vai fazer o aporte de acumulação uma em outra, visceralmente. Esse dado do belo vai ser de fato sublimado. Do olhar tátil até o atrito com o corpo, é o miolo, o refugo, a mistura do que está escondido que agora se apresenta como estrias, marcas, perfurações, suturas, etc.
Hoje, não consigo pensar a produção simbólica do Brasil excluindo o semiárido. Confluir esses propósitos, suas falhas, produções e circunstâncias é enlarguecer o horizonte. Por exemplo, quando fui expor no Museu da Vale, em Vila Velha, percebi a importância daqueles carretéis no porto e subi no lugar mais alto da cidade e foi a partir dessa apresentação do lugar, tanto cultural (porto) quanto natural (montanha), que projetei a construção e o empilhamento dos carretéis anárquicos no Museu. O trabalho tem a ver com essa topologia.
Em todo o percurso que fiz até agora, o que importa foi ter indicado possibilidades através dessas intervenções em várias cidades, não a conclusão do projeto. Mesmo porque o bom projeto tem que se negar a uma facilidade que o domestique, do mesmo modo como uma boa produção tem que dar o bote no artista, ela tem que ir mais além, muito além do que seu criador desejava. Eu não posso pensar nenhuma experiência dessas que realizei que não tenha se voltado como um aprendizado existencial. Cada projeto – desde a primeira ideia, a pesquisa aprofundada, as condições estruturais, a formação da equipe, as ferramentas inventadas, as máquinas de corte, as mesas de colagens, os deslocamentos com as viagens, a equipe de um lugar a migrar e coexistir em outro lugar e montar o trabalho tudo é complexidade e etapas fundamentais do projeto.
Tatuí | Você poderia falar um pouco desse projeto que lhe ocupou os últimos anos? Falar da relação entre trabalho e intensividade – de como o fazer artesanal de sua obra, em substituição ao trabalho industrial, tinha implicações sobre a briga corporal e se tornava um território de ação sociocultural, envolvendo um grupo significativo de pessoas…
EF| Essa complexidade eu chamo de corpo coletivo. No ateliê, a questão maior era que esse trabalho não fosse alienado, anônimo, mas que politizasse a posição de qualquer um que ali tivesse. Ninguém era especialista em nada. A gente trabalhava uma proposição como potência. Sempre se lia algo, se conversava muito, muitas vezes parando a produção para uma questão que se apresentasse como um valor de troca – podia ser um texto do Guimarães Rosa; uma palestra de interesse público com professor convidado; ou dados do cotidiano mais urgentes (política, violência, religião, Brasil, mundo); ou questões suscitadas pelo próprio trabalho, como pra quê, por que, como, pra quem, aonde; ou simplesmente pensar o que é uma linha ou um bom desenho. Qualquer troca de saberes cabia nessa organização de trabalho – lúdico, consciente e plural. Não tinha uma só pessoa que não pudesse compartilhar um conhecimento, ou um dado de sua inteligência, e aquilo voltar em potência coletiva como um bem comum a todos.
Para realizar projetos, recebia dinheiro das instituições, mas não acumulava bens com isso. Esses trabalhos não eram commodities. O dinheiro era desviado para dar emprego e compartilhar conhecimentos. Era uma utopia do possível e o ateliê era uma nave propulsora de “fazimentos”. A biblioteca era aberta na hora do almoço – alguns liam, outros folheavam, e o Wagner leu muito, principalmente literatura. É claro que essa experiência foi inconclusa, mas também, na mesma medida, bem-sucedida durante 14 anos. O sistema não absorveu essa produção, que não se apresentava como uma commodity de valor acumulativo e de velocidade fugaz. Foi uma experiência a contrapelo de uma especulação meramente comercial. A primeira coisa era dar emprego, e esse dinheiro chegava na casa do cara inclusive pra comprar telha pra casa da mãe, etc. Muitas vezes, para manter o ateliê entre uma proposta e outra – e a maioria dos processos construtivos no ateliê duravam de 6 a 10 meses, para cada grande trabalho – era necessário segurar a equipe para dar seguimento a todo o processo em andamento. Era difícil partilhar essa experiência, que se tornava um paradoxo dentro do sistema de arte brasileira (conservador e excludente). Quase toda a totalidade dessas intervenções foram feitas em instituições públicas, exceto uma Extensões da Fenda, numa galeria particular em São Paulo. Muitas vezes deixei de ser convidado para exposições porque produzia longe, o transporte seria caro; e isso é cruel. Mas o bom de tudo era que quando o convite se firmava, o impacto que a intervenção gerava na instituição era de deslocamentos e desarranjos em muitos sentidos, para receber um projeto que envolvia uma equipe que sabia questionar, que tinha saberes pra dialogar com a equipe do lugar. Não havia espaço para baixa autoestima, porque esse processo de conhecimento adquirido produzia uma alta autoestima. Era um saber de bom posicionamento e enfrentamento às situações adversas. Como disse acima, penso que o circuito de arte e a política constitutiva de seus acervos não incorporou, como se presumiria, algumas produções feitas exclusivamente para esses espaços. Se eu te falar a quantidade de trabalhos meus que foram destruídos, você não acredita. Mas disso tenho uma nítida conclusão: problematizar o circuito é politizá-lo.
Tatuí | E você fez tudo isso através de um trabalho que é formal, também. Tudo isso são questões extremamente importantes e abordadas de uma maneira muito direta, sobretudo em trabalhos dos anos 90 pra cá, que operam num nível mais semântico, discursivo, argumentativo, criando situações de conversas, de falas, que envolvem grupos sociais vulneráveis, e tentando instaurar esse processo de emancipação de uma maneira mais direcionada, às vezes arriscadamente assistencialista. E você chega nesse lugar de outra maneira, por outro percurso – e consequentemente com outros interesses –, que a meu ver tem a forma como elemento designador. Isso pra mim é algo extremamente significativo de uma potência da forma para além do formalismo, hoje. Ao mesmo tempo, isso é muito difícil de ser acessado sem uma esfera de mediação, na relação direta com a obra, quando deslocada de toda essa contextualização, o que é um problema da forma, aliás, talvez o problema histórico da forma por excelência.
EF| Eu detesto coisa piegas, coisa de tirar retratinho de gente pobre… Tem que dar emprego digno, reativar a economia como um fato político, sociabilizar o capital, conferindo conhecimento. Pobre não é pra ficar batendo tambor… Isso é recreação, exclusão e assistencialismo do mais barato. O ateliê chegou a empregar 18 pessoas. Tinha projetos para mais de 20, mas não teve uma instituição que nos financiasse sistematicamente por um bom tempo. A ideia era trabalharmos diariamente até 14h30 e estudar de 15h às 17h: filosofia, os intérpretes do Brasil do modernismo pra cá, história da arte, tecnologia, inglês e outras áreas afins. Esse projeto não aconteceu plenamente, mas até hoje tenho todo o seu programa pensado e concluído como proposta sociocultural e coletiva. Eu detesto essa coisinha de fazer recreação, eu sou contra dar bolsinha de R$150. Dê emprego digno e nesse emprego crie possibilidades para ser igual e potencialmente diferente. É disso que surge a riqueza mais produtiva.
E voltando à questão da forma: ora, o que eu vi no Rio de Janeiro, que já vinha desde Hélio e Lygia, foi um processo de desmaterialização na produção da arte. Achei que não poderia sublimar meu embate inventivo por conta de uma tradição na cidade do Rio que já se desenhava histórica.
Na minha época, vários amigos estavam indo pra Nova Iorque, e eu preferi voltar pro Ceará, montar um ateliê, arriscar um projeto que julguei ser mais difícil, porém não menos contundente e vertical, e quebrar o campo circunscrito de uma produção linear e historicizada, que me amarrava mais do que soltava. Fiz a opção pelo embate existencial e pulsional com o trabalho, e não por uma vocação dita profissional ou de inserção desmedida num circuito. “O Ceará é longe pra danado!”. E quando eu falo trabalho em arte, eu falo de tudo: é você pensar, pesquisar, dar sentido a uma invenção conceitual e material, é esbarrar com a gestação de uma produção numa cidade materialmente pobre, mas rica em inventividades populares. O trabalho, pra mim, é esse campo de potência existencial em atrito com o mundo.
Eu gostaria que alguém fizesse um texto um dia que desse leitura à complexidade de funcionamento do ateliê, porque aquilo era uma inflexão política alterada num lugar – uma leitura que pensasse o trabalho e o capital não como um confronto, mas como um desvio, diria até anárquico ao establishment. Alterar o percurso do dinheiro, fazer um desvio inclusivo, evitar as mesmas práticas de alienação social: não é um fato político? E que fique bem claro, sempre através de uma proposição artística.
Tatuí | Temos aí outro ponto, porque o problema da forma, mesmo no mundo da arte, tendeu a se colocar como um problema cognitivo, conceitual. Quando você fala em fisicalidade, você traz isso pra um campo mais materialista que me faz pensar também no embate entre um capitalismo cognitivo/criativo, calcado num capitalismo abstrato que muitas vezes obscurece o capitalismo das grandes indústrias, o dinheiro pesado que ainda pauta a nossa vida social. Capitalismo esse que muitas vezes nós mesmos – produtores do campo simbólico e da arte preferimos não abordar sob a escusa de ideologia ou anacronismo conceitual, focando nossas atenções em outras dimensões do capitalismo cognitivo, que tem talvez um modo discursivo mais próximo à versão formalista da forma quando é teorizado à distância da carne e da máquina. Talvez seu trabalho, quando se prega na fisicalidade, trate da forma em seu peso, retirando-a desse perigo abstrato, atentando para a questão materialista, que é também um materialismo da forma, com todas as implicações sociais, econômicas, etc., e, claro, de percepção…
EF| Para mim, a questão da forma é a materialidade incorporada de subjetividade, não separadamente. A fisicalidade do novo que se apresenta é o algo inventado, transmutado e traduzido. O trabalho é subjetivo na sua porção maior: não está na mesma ordem o valor que vai afetar a todos de maneira diferente, cada um terá uma solução a compartilhar e aprenderá a dialogar com o outro. No nosso grupo de trabalho, por exemplo, existiam arestas quando se botam 10 pessoas, 8 ou 16 para fazer algo juntos, aquilo tem que ser negociado para a experiência se tornar um bem comum, coletiva e socialmente. Eu não posso ter uma experiência valiosa, na minha mesa de trabalho, sem outros saberes. Na produção da arte não pode haver fordismo: assim não causa torção, revirão, corte… Entende? Fazia questão nas negociações com as instituições para que parte da equipe viajasse para a montagem do trabalho. Iam no máximo 5 e no mínimo 2 algumas vezes em revezamento. Porque montar o trabalho em outra cidade era parte do percurso das ideias e da expansão do conhecimento sociocultural. Isso, para que a pessoa não fosse alienada na produção, e para entender que aquilo, naquele lugar, desloca tudo, muda a percepção de lugar e a leitura de mundo… Que existe um museu naquela cidade, e que a cidade é de tal e tal maneira. Na verdade, essa coisa de ir costurando um circuito público com o meu trabalho é uma posição política, de fato. Eu não estou brincando com isso quando faço opções em intervir em instituições públicas, isso faz parte da filosofia gerencial do trabalho. Quando eu recebo um dinheiro da Vale, ou do Banco do Brasil, etc., para fazer uma intervenção artística, eu não estou alienado do que é um dinheiro público para fazer funcionar uma experiência coletiva no ateliê. O dinheiro era para gerar aquela proposição ateliê/corpo/coletivo. No contrafluxo de uma tradição que se encaminha para uma desmaterialização fácil e sem caráter (o capitalismo funciona porque desvia o capital produtivo para o mundo da especulação financista e de valor quase sempre duvidoso), optar por uma nova fisicalidade é inventar uma condição erótica da obra de arte num mundo cada vez mais assexualizado e evasivo das tensões que uma complexa produção engendra.
Tatuí | A ideia do atrito é muito boa para pensar mesmo a questão formal, porque é outra ordem da forma, né? No sentido que não é aquele formalismo normatizador, universalista, que tenderia a tudo estruturar, organizar e modelar. Não um formalismo paradigmático, mas contingente, que cria atrito, que existe para e pelo atrito.
EF| Pois é, acho que uso muito essa palavra porque penso mesmo que a produção de arte é atrito, e aí eu sou passional com isso. As pessoas dizem “faz os trabalhos menores…”, e eu respondo: a escala é fundamental para essa descostura de borda escrever no intangível, essa é a grande questão, e não se trata de pequena e de máxima escala, simplesmente eu não poderia reduzir, em qualquer dos sentidos, o fluxo daquele conhecimento. Isso é uma relação de espaço, de corpo, de escala de semiárido, de plano de sertão incandescente, de linha nômade anônima e extensiva. Mas eu também tive consciência de que estava esticando a corda e ela podia quebrar a qualquer momento, como de fato ela quebrou. O importante é que esse processo se construiu na radicalidade e se quebrou na mesma radicalidade que o seminou. E isso acho muito pertinente.
Porque pensar a forma é engendrar uma potência inventiva para além dela mesma – complexa e prenhe de paradoxos e contradições. Eu nunca produzi nada sem risco de transbordamento. É como oCubocor, de Aluísio Carvão, um gesto de sofisticado transbordamento. Aquilo dança o samba de João Gilberto, tem batida e voz dissonantes, é tão seminal quanto indicador da futura produção experimental da arte brasileira (tão importante quanto a Linha orgânica, os Bichos, o Caminhando, de Lygia Clark; os Relevos espaciais, os Parangolés, os Bólides, a Tropicália e Outras bossas, de Hélio Oiticica), gestos simples e sofisticados, como um ato de coragem e inventividade ímpar. Ele pinta aquele cubo de cimento e dá uma guinada em toda a tradição ocidental do construtivismo eurocêntrico: aquilo é samba, com grande dose de miscigenação. Ele não inventou o cubo, mas o colocou em outro percurso – um desvio seminal. E como João Gilberto, que também não inventou o samba, mas seminou aquela batidinha de descaminho e fez aparecer uma percepção quase abstrata de uma cultura oral, semianalfabeta, mas sofisticadíssima. O Cubocor impõe uma questão além-forma, é obra de miscigenada invenção e síntese poética. Aquele gesto só poderia ser mesmo um descuido de um poeta (quem o conheceu sabe que Carvão era um poeta), nunca uma formulação de um cientista ou matemático. O Cubocor não tem o dado da razão do construtivismo internacional. É um gesto poético à deriva, nunca uma fórmula de matemática aplicada. Pensar aquela invenção como uma simples operação escultórica é não entender um dado fundamental da arte: a liberdade.