www.revistatatui.com.br
[1]
É preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente; – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão.
Hélio Oiticica. Brasil diarreia (1973).
1
Como não poderia deixar de ser, a “virada linguística” que emancipou a linguagem de sua unívoca vinculação aos referentes [2] continua virando. A “desontologização” linguística [3] instaurada por esforços – tão diversos quanto vizinhos – como os de Duchamp ou de Wittgenstein II parece estar, sobretudo no que concerne à sua socialização, ainda numa primeira dentição. Assim é que, inclusive para nós, predadores do campo simbólico, as consequências da roda de bicicleta duchampiana e da (auto)crítica wittgensteineana ao racionalismo lógico-estrutural se mostram tímidas. É bem possível que nunca vivenciemos a “anarquia ontológica” [4] que através delas se anuncia, “simetrizando” [5] a existência ao depor verdades, princípios, fins. De toda maneira, o abalo que a revolução linguística impôs ao essencialismo, à metafísica e à representação se desdobrou por toda parte, levando a arte do século XX a fervorosamente recriar ideias de criação.
Nesse processo, a linguística passa a habitar o campo das análises da linguagem ordinária que, como tal, está posta, sem origens ou finalidades: “a imagem está aí; e não contesto sua justeza. Mas o que é o seu emprego?” [6] O uso (“todo signo sozinho parece morto. (…) No uso, ele vive” [7] ) – aplicação, emprego – é alçado a protagonista da linguagem e seus jogos, num movimento profanatório que, também na arte, desierarquiza e transforma: “que mais se desejaria criar? tudo já está aqui. (…) criar não é a tarefa do artista. sua tarefa é a de mudar o valor das coisas” [8] . Assim é que, para Oiticica e tantos outros, criar se torna “dar uma posição” face ao que está posto – “assumir uma posição crítica diante de um fato é propor uma mudança; propor uma mudança é mudar mesmo” [9] . E, como tal, “implica em inevitáveis ambivalências”.
Linguística e politicamente, nessa reviravolta, as ambivalências parecem fazer-se necessárias; aos poucos vão positivando-se. Deixam de ser consideradas como resíduos (“erros”, “falácias”, “confusões”, “efeitos colaterais”) do processo de objetivação para afirmarem-se como território mesmo de qualquer “objetividade” que não poderia, por sua vez, ambicionar-se como irrevogável verdade. Também junto à virada histórico-sociológica da ciência (que passava a compreender suas implicações contextuais) [10] , esse chacoalho no status da linguagem e do conhecimento vai tornando protagonistas as descoincidências de resultados, discursos e ações: ainda que lentamente, as ambiguidades não apenas deixam de ser marginalizadas como, mais adiante, se tornam ponto de partida para pensar a vida e suas dinâmicas. Pois, para Hélio Oiticica, assumir as “inevitáveis ambivalências” seria produzir uma “posição crítica” na medida em que, sendo o “discurso ideológico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser (…), [engendrando] uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade” [11] , apenas um contradiscurso que trouxesse à tona as contradições internas (do próprio (contra)discurso ideológico) seria capaz de “colocar as coisas em questão”. É que, se a ideologia oculta diferenças através da construção de uma totalidade imaginária que seria supostamente capaz de explicar a realidade, a posição crítica primeira está em colocar em descrédito quaisquer “valores absolutos”, abrindo-se às ambivalências.
Desafiando conformismos ou absolutismos, a atenção às ambivalências, ao evitar o “vício metafísico da fundamentação e do terreno comum, até mesmo da visão de conjunto” [12] , implica numa revisão das estruturas de oposição na medida em que não toma uma linha divisória como princípio ordenador. Desautorizando o Grande Divisor diante do qual tudo se relativizaria, o território da ambiguação depõe o ponto de vista ideal, constituindo-se como relações (in)constantes de perspectivas diferenciantes que nunca se estacionam. Tal desontologização faz vislumbrar a possibilidade de modos existenciais “cujo (in)fundamento é a relação com os outros, não a coincidência consigo mesmos” [13] , desobrigando-se da remissão a instâncias totalizantes (como Deus ou Estado, referências ou significantes) para lançar-se prioritariamente ao terreno do “uso” e da “posição” – às relações. Do ready-madeduchampiano à crítica da linguagem privada wittgensteineana, como sublinha Eduardo Viveiros de Castro, ao invés do complexo modernista da produção, estamos no campo da predação [14] : “só me interessa o que não é meu” [15] .
O deslocamento da ênfase na produção ao consumo (noutra dimensão, à devoração) – corroborado por Oiticica [16] ”. Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 114.] e já formulado por Oswald de Andrade em 1929, quando afirma que Marx havia errado ao privilegiar os “meios de produção” ao invés da finalidade da mesma, o consumo [17] – impõe uma condição outra. Diferentemente do que ocorre na produção, no campo da predação, consumir é estar consumível: comer é estar aberto à inevitável ambivalêcia de ser comido. Se o foco na produção mantém estável a linha divisória da propriedade, o consumo responde com a posse (donde o bradado “a posse contra a propriedade” dos modernos antropófagos brasileiros); a tomada – ocupação, possessão – do que “está posto” que é capaz de transformar a linha numa cama de gato, como em 1970 percebera Cildo Meireles [18] . Há, contudo, uma nuance que não se pode perder de vista: a cama de gato é menos o território da diversidade, que o terreno da diferença.
2
Na diferenciação entre um copo de água benta e um copo de água comum, contraste e contexto são as “ferramentas” fundamentais; wittgensteineanamente, apenas em seu uso é que teríamos alguma chance de diferir um copo d’água do outro. Por sua vez, a encruzilhada colocada por Deyson Gilbert – ao retirar os copos de um contexto significante para lançá-los às suas próprias coincidências – coloca-nos diante de uma situação de alteridade absoluta: sem uma teia de sentidos que constitua identidades (portanto, em meio a uma situação de anarquia ontológica), nada nos garante que a água benta não seja comum; nada nos leva a crer que haja alguma diferença possível entre uma e outra. Em Copo de água benta ao lado de copo de água comum (2009), não há sequer evidências que exista algo como “um” e “outro”. Sem linha divisória, a situação nos devolve à cama de gato.
A ambiguação instaurada pelo artista no momento do ocultamento da dimensão de exterioridade (contexto e contraste) que salvaguardaria a alteridade diferenciada entre as águas (benta ≠ comum; ou, ainda, roda de bicicleta e obra de arte) nos faz experimentar, por sua vez, o processo de alteração diferencial [19] : sem essências distintivas, qualquer diferenciação se fará pela configuração de uma exterioridade. Para distinguir as águas, seria preciso constituir um fora no seio do qual pudessem alterar-se diferencialmente – somente na criação de exterioridade (diferença) seria possível produzir descoincidência (alteração).
Com Wittgenstein II e sem as armadilhas do “platonismo” lógico-estrutural, sabemos, todavia, que não há distanciamento possível entre essa exterioridade e qualquer dimensão que se imagine como “interna”(a linguagem não está nos referentes ou na gramática, senão em seu uso, em jogo). Como ainda mais contundentemente demonstra o canibalismo ameríndio, o interior depende de um sair de si: “a religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais do que o movimento para fora” [20] .
[Breve digressão antropofágica] Diante da tendência da arte (não da moderna, mas da atual) em culturalizar a antropofagia, talvez a radical contribuição – no que concerne às discussões do campo da arte – da antropologia brasileira [21] esteja em reposicionar o canibalismo para além dos dois devires comumente a ela atribuídos, o “tornar-se outro” e, ainda mais superficialmente, o “tornar-se um”. Enquanto ronda – entre o outro e o um – uma espécie de fantasma hegeliano (algo como “tornar-se antítese” ou “síntese”), o argumento antropológico ecoa a crítica oswaldiana a essa dialética [22] ao fazer ver que o complexo do canibalismo “permitia nem mais nem menos que a perpetuação da vingança. (…) O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo consumia os indivíduos para que seus grupos mantivessem o que tinham de essencial: sua relação ao outro, a vingança como conatusvital” [23] . Nesse sentido, matar, comer e vingar produziam menos um corpo-outro ou único do que tempo: “só quem está para matar e quem está para morrer é que está efetivamente presente, isto é, vivo” [24] . O complexo antropofágico produzia, assim, continuidade e, com ela, tempo histórico. Ao passo que constituía futuro (no qual já era sabido que o matador se tornaria vítima), impossibilitava também o assentamento das identidades ou dos poderes, visto que configurava, através do vínculo à tribo inimiga, uma relação de exterioridade que se tornava imanente à própria existência: “os inimigos eram também os guardiões da memória coletiva, pois a memória do grupo (…) era a memória dos inimigos. (…) A guerra de vingança tupinambá era a manifestação de uma heteronomia primeira, o reconhecimento de que a heteronomia era a condição da autonomia” [25] . A vingança – complexo às vezes ocultado pela tantas vezes harmonizadora “culturalização da devoração” – era, assim, a “forma pura do tempo, a desdobrar-se entre os inimigos” [26] . [Fim da digressão]
Tal qual para comer é preciso estar comível, voltando às águas, compreendemos que, para ser comum, é preciso estar “beatificável”. A aparente inversão da ordem dos termos (a abertura ao “beatificável” como condição prévia ao ser comum, a heteronomia como condição da autonomia) advém de um regime de alteridade absoluta: sem metafísica ou essencialismos, inclusive o ser comum é uma conquista: justamente porque as coisas estão postas, nada há de a piori. Consequentemente, não haveria, portanto, um estado de diversidade – há apenas a infinita cama de gato da ininterrupta alteração diferencial, do diferir.
3
Uma possível diferença primordial entre “assumir ambivalências” e “aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas” reside na não-garantia do comum. Ainda que saibamos que obras de arte ou significados existem apenas no seio de uma comunidade cujos participantes os presentifiquem (os usem, tornando-os vivos) – que não há, portanto, qualquer terreno comum para a linguagem e para a criação –; e a despeito de compreendermos que a ideologia (através da ideia de Estado, por exemplo) é a tentativa de fazer “com que o ponto de vista particular [daquele] que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e políticos como universal” [27] , talvez apenas a descrença na unidade ou na comunhão permita-nos “abrir mão” das aspirações à estabilidade ou à totalidade. Havendo a anarquia sido uma das tentativas ocidentais de refutar (através da abolição do Estado e da propriedade privada) esses sentimentos de ordem, na invasão do leste pelo oeste, talvez reste no perspectivismo ameríndio uma instância mais radical desse ímpeto anárquico, a ontológica: onde o que faz os copos d’água benta e comum (in)distinguirem-se transborda também para a própria condição de humanidade.
Pois, enquanto nós vivenciamos um multiculturalismo – regime de natureza unívoca, cujas variações são de ordem interpretativa, representacional (relativismo) –, a cultura ameríndia se sustenta num multinaturalismo: são múltiplas as naturezas. Como salienta Eduardo Viveiros de Castro, diante do pluralismo natural há, todavia, uma única cultura, a da humanidade: “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” [28] . A questão é que, se todos os seres se sentem humanos em seus pontos de vista, nunca se pode estar certo acerca de quem é humano [29] : a “humanidade de fundo torna problemática a humanidade de forma” [30] . Assim, a despeito de ser a condição originária de todos os seres, a humanidade permanece uma conquista cotidiana – “é necessário se fazer humano”: “(…) Você não é um verdadeiro humano se seu corpo não é diferenciado; o corpo humano enquanto tal é demasiado genérico. (…) Quando nasce uma criança, a primeira coisa que os que estão em volta fazem é ver se ela é humana ou não. (…) Deve-se, pois, tomar todas as providências para que ela seja, de forma clara, definida como humano. Para isso, é preciso raspar-lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se torne humana como nós. Tudo se conecta: portanto, é preciso diferenciar; é preciso distinguir.” [31] Como só é possível distinguir a partir da constituição de uma exterioridade, toda a ontologia será necessariamente relacional.
Entretanto, sem a linha divisória primeira – a da humanidade, que nos diferenciaria de todo o restante –, o caráter relacional dessa ontologia não se dá como relativismo, mas como perspectivismo. Na ausência de uma Natureza única e separada em torno da qual tudo se relativizaria [32] , e diante de um fundo comum a tudo e todos – a cultura da humanidade – que, como tal, nada distingue, o perspectivismo reorganiza enfaticamente os modos dessas relações. Sem linha divisória – natureza ou humanidade –, as relações estabelecidas entre os diversos seres são simétricas e cambiáveis, perspectivas sem ordenação hierárquica que, por não serem originariamente distintas entre si, metamorfoseiam-se constantemente como forma de gerar diferenciação e subjetividade: cama de gato.
Por sua vez, o ponto de partida desse contínuo processo de alteração diferencial será aquilo que singulariza (através da pluralidade de suas formas e afecções) a humanidade de fundo – o corpo, habitat do ponto de vista: “se a alma é formalmente idêntica entre as espécies (…), a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. (…) Não diferenças de fisiologia (…), mas afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário (…), um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. (…) O corpo (…) é a origem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal” [33] . Portanto, a humanidade se faz como problemática formal vinculada ao uso: não como antropocentrismo, senão como antropomorfismo [34] .
Sendo o corpo o ponto de vista, tem-se que as perspectivas não são representações – não há perspectivas sobre o mundo (relativismo). No perspectivismo ameríndio, as perspectivas são os mundos: portanto, quem ocupa um ponto de vista é sujeito. Assim como – também para Wittgenstein II – não há separação entre linguagem e mundo, entre discurso e ação (falar é agir o mundo), para Oiticica, “assumir uma posição crítica diante de um fato é (…) mudar mesmo” [35] na medida em que se trata da produção de uma perspectiva que é, em si, a criação de um mundo. “Assumir as ambivalências” – inclusive uma possível ambivalência “originária”, a anarquia ontológica que não salvaguarda identidades, nem mesmo a humana – torna-se, assim, por sua radical instabilidade, o avesso do conformismo.
4
É notória a “inconstância selvagem” – manifestação discursiva da instabilidade topológica ameríndia – que, sobretudo no processo de conversão dos índios brasileiros ao cristianismo, foi ao mesmo tempo obstáculo e resistência: nosso gentio era “receptivo a qualquer figura, mas impossível de configurar” [36] . Do mesmo modo que demonstravam-se convertidos, na sequência desacreditavam do Deus que haviam recém acatado – como notava Padre Antônio Vieira, “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos” [37] . O problema não era um “dogma diferente” mas, como aponta Eduardo Viveiros de Castro, “uma indiferença ao dogma, uma recusa de escolher” [38] que estava vinculada à ausência de sujeição. Sem a cultura de um poder soberano (Rei, Lei, Estado, Deus, Natureza, etc.) e com a humanidade como fundo, ser sujeito passava inclusive pela possibilidade de ocupar diversos pontos de vista ao longo do tempo. Numa ontologia relacional, não há porque fixar-se: a troca – e não a acumulação – é o valor fundamental.
Nesse contexto, além do complexo da vingança, também a descoincidência consigo mesmo é um modo de produção de tempo. A constante ambiguação, algo como a ativação “da dimensão de exterioridade que nos é imanente” [39] – não ser cristão ao sê-lo, ou ao mesmo tempo estar água benta e comum –, ao não permitir que fixemo-nos em identidades estanques (ao forçar a contínua transformação do Tabu em totem), faz correr o tempo e, mais adiante, dá a ver outra temporalidade. Distinta de sua versão moderna, essa temporalidade revê o estatuto da memória, da repetição e da sincronicidade, criando uma cama de gato também na “flecha do tempo” de outrora: “Como conceber um tempo devolvido a si mesmo, portanto não esquematizado, não direcionado, puro campo de vetores sem orientações determinadas? Não assistiríamos aí a emergência de um tempo flutuante, não pulsado, mutliplamente vetorizado, quase enlouquecido? (…) O tempo como Desigual-em-si. Apenas na sua modalidade incondicionada, imanente, positiva, pode ele conquistar-se como potência genética, como virtualidade pura, como variação infinita” [40] .
A produção de uma temporalidade em ambiguação (ou, noutra direção, a ambiguação do tempo) – e, com ele, a liberação do compromisso ontológico de continuarmos sendo quem somos agora – dá as bases, assim, para a metamorfose primordial: a do impossível em possível. É o caso do tempo produzido pelo complexo da vingança tupinambá que, através de seu singular regime de memória, converte “a fatalidade natural da morte em necessidade social e, desta em virtude pessoal” [41] , possibilitando a imortalidade. É o caso, também, da conversão retroativa entre água benta e água comum tornada possível através da obra de Deyson Gilbert – que, ao mesmo tempo produto e produtora de um processo de ambiguação, ao instaurar uma temporalidade e uma ontologia flutuantes entre a coincidência e o descoincidir, não permite estacionar-se na estabilidade de um hipotético “caráter ambíguo”, abrindo espaço para um contínuo revolver-se. Noutras palavras, para uma retro-auto-eco-revolução. Pois, assim como é preciso fazer-se humano para manter sua humanidade, também para haver ambiguidade é preciso constante ambiguação.
5
Ainda que apenas por alguns instantes, em Copo de água benta ao lado de copo de água comum (2009), a sensação de “ausência” de linha divisória pode ocultar a anterior operação de ambiguação que tornou possível a situação montada por Deyson Gilbert: previamente, foi preciso reconhecer a dimensão lacunar do aparato cultural que distingue água benta de água comum. É por obscurecer a dimensão de exterioridade-comum que é imanente a toda água benta – ou, mais amplamente, a dimensão de exterioridade da cultura como sistema religioso que é imanente à religião como sistema cultural [42] – que ideologicamente se faz possível sustentar (através dessa operação lacunar [43] ) que a conversão do comum em bento seria assimétrica: um caminho sem volta. Assim, o “desaparecimento” da linha divisória entre as águas não acontece por meio de um dispositivo que apague suas diferenças mas, fundamentalmente, pela evidenciação do espaço em branco do discurso (como tal, ideológico) que visa incluir essa diferença numa flecha do tempo irreversível. Noutras palavras: a cama de gato se dá na criação de uma situação que enuncie o comum no interior da dimensão de exterioridade que é imanente ao bento. Se dá através do vislumbre de uma existência simetrizada, de conversão retroativa (onde comer é estar comível). Nesse sentido, a ambiguação constitui-se não no apagamento da linha divisória [44] resultaria (…) da expulsão dos invasores (…), [esperando] achar o que buscavam com a eliminação do que não é nativo. O resíduo, nesta operação de subtrair, seria a substância autêntica do país” [SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 114] –, a estratégia de Cildo Meireles será operar por irrestrita adição. Ciente de que a operação de subtração da linha divisória incorreria noutra linha – portanto, numa configuração subjetiva recalcada –, sua opção antieconômica, antropófaga e globalizada se faz clara: “cama de gato”.], mas através de sua metamorfose – que, em última instância, é a alteração de (nossa) perspectiva – em linha orgânica.
Como “linha-espaço” que “aparece quando duas superfícies planas e da mesma cor são justapostas”, a linha orgânica percebida por Lygia Clark (1954) é a própria dimensão de exterioridade imanente a todo interior – do encontro entre “dois tacos” à aproximação entre “quadro e moldura”, entre dois copos d’água ou, mais fundamentalmente, no encontro entre seres que, não sendo “superfícies planas e da mesma cor”, têm, contudo, uma equivalente humanidade como fundo. Fazendo vazar exterioridade para o “interior” – como tal, atuando numa topologia moebiana –, diferentemente do caráter separatista e relativista da linha divisória, a linha orgânica conecta sem unir: enquanto a primeira separa quando está presente e, quando ausente, gera indistinção; a linha orgânica nunca está lá. Ela é uma perspectiva. Uma perspectiva surgida na aproximação entre formas equivalentes que, todavia, não coincidem. Como a ontologia relacional ameríndia, a linha orgânica está no espaço do entre. Assim como o sujeito não é uma entidade, mas existe como ponto de vista, a linha orgânica – a ambiguação – “é menos uma física das substâncias do que uma geometria das relações” [45] . Como adverte Lygia Clark, “esta linha não aparece quando as duas superfícies são de cores diferentes. (…) Você verá a linha orgânica desaparecer. Ela foi absorvida pelo contraste entre o branco e o preto” [46] .
É menos nos grandes contrastes – como nos já estabelecidos regimes de oposição –, mas sobremaneira onde aparentemente residem as equivalências, que se dá, portanto, a potência da ambiguação. É ali, onde parece existir unidade (e consenso), que se faz urgente (e talvez politicamente eficaz) exercitar modos de percepção que nos tornem atentos não apenas às distâncias extensivas e extrínsecas, mas à “diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida” [47] , desigual-em-si. Sem metafísicas ou essencialismos, e no seio de uma ontologia relacional, já que nada necessariamente coincide ou difere (tudo pode ambivalentemente ser humano, significado ou obra de arte) – donde decorre que o problema da forma das coisas e dos seres é o problema de suas perspectivas (não sobre, mas das mesmas; algo que nossa inexperiência xamânica por hora nos impede de averiguar) –, a questão que parece se impor é como “(re)posicionar-se” para não apenas “assumir” mas, principalmente, para “colocar em questão” essas ambivalências. Quando “a humanidade de fundo torna problemática a humanidade de forma”, pós-oiticiqueanamente, “assumir as ambivalências” como fundo torna igualmente problemáticas as ambivalências como forma.
Portanto, “criar como mudar o valor das coisas” não seria a instauração de “ambiguidades” como nova linha divisória – anseio que tão corriqueiramente se pode testemunhar no campo da arte, dada a transformação da “ambiguidade” numa espécie de licença poética (e formal) contemporânea. Antes – e inclusive para além da cama de gato –, criar talvez seja metamorfosear a linha divisória em linha orgânica:contínua ambiguação da ambiguidade, ação no interior da dimensão de exterioridade que é imanente, descoincidência entre diversidade e diferença, produção de tempo e temporalidades. Ambiguar a ambivalência: eis aí outra questão.
[1] — Os parágrafos que se seguem devem ter tido suas primeiras contrações em 2009, numa noite recifense em que, havendo tomado emprestado o livro Arte brasileira hoje (org. Ferreira Gullar), Vitor Cesar e eu lemos juntos o Brasil Diarreia de Oiticica. Ainda que ambos já tivessem lido o famigerado texto, parece-me que foi apenas naquela leitura a dois que incorporamos as inquietações de Hélio: dali em diante, a ambivalência alojou-se entre nós como força propulsora para pensar a vida e, consequentemente, a arte. Considero este texto como uma das camadas dessa conversa que se desdobra infinita e insuficientemente, informada – além da anfibologia tão cara a Vitor Cesar – também pelo duplipensar ativado por Jonathas de Andrade, pela economia do corte que faz mover Pablo Lobato, pelo grau zero narrativo ansiado por Sofia Borges, pela exterioridade imanente da forma experimentada por Cristiano Lenhardt e, especialmente, mediada livre e inventivamente pela filosofia da linguagem de Wittgenstein II e pelo perspectivismo ameríndio tal como colocado por Eduardo Viveiros de Castro.
[2] — Nem tudo o que tem sentido tem referência; não é preciso referir para significar.
[3] — Não sendo preciso referir-se a algo para significar (gerar/fazer sentido), a linguagem prescinde de uma lógica identitária totalizante (de uma ontologia): palavras podem ter muitas faces, múltiplos significados.
[4] — HakimBayapud Eduardo Viveiros de Castro em Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis. In: SZTUTMAN, Renato. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 241.
[5] — Cf. Bruno Latour em Jamais fomos modernos – ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
[6] — Ludwig Wittgenstein emInvestigações filosóficas. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. p. 134.
[7] — Idem
[8] — Hélio Oiticica em Experimentar o experimental (1972). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 108.
[9] — Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 113.
[10] — Cf. Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas (1962). São Paulo: Perspectiva, 1992. 3ed.
[11] — Marilena Chauí em O discurso competente (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 15.
[12] — Inês Lacerda Araújo em Do signo ao discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 108.
[13] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 195.
[14] — Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 15.
[15] — Oswald de Andrade em Manifesto Antropófago (1928). In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. p. 67.
[16] — “Por acaso fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienar-se, ou melhor, procurar uma solução ideal, extra – mais certo é, sem dúvida, consumir o consumo como parte dessa linguagem [linguagem-Brasil
[17] — “O que interessa ao homem não é a produção e sim o consumo”. Oswald de Andrade em Os erros de Marx. In: ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão. São Paulo: Globo, 2008. p. 81.
[18] — No texto Cruzeiro do Sul (1970), “cama de gato” é a resposta de Cildo Meireles ao problema da linha divisória. Prenunciando a invasão do oeste sobre a terra à sua direita – “azar para o leste” –, em tom fabulístico, senão praguejador, o artista reage às linhas divisórias com a ameaça de uma insurgência do oeste, identificado pelas pulsões selvagens: “A selva continuará se alastrando sobre o leste e sobre os omissos até que todos que esqueceram e desaprenderam como respirar oxigênio morram (…)”. Contra as divisões artificiais feitas sobre a terra (“seus primitivos habitantes jamais a dividiram”) – em oposição, portanto, a marcos de autoridade como Greenwich ou Tordesilhas –, e a despeito de toda vontade civilizatória de ordenação e racionalidade, Cildo Meireles falará da força do desconhecido e da matéria, das “cabeças enterradas na terra e na lama”, “cabeças dentro de suas próprias cabeças”, “sem o brilho da inteligência ou do raciocínio”. Em continuidade à veemência antropofágica da cultura brasileira – “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”, “o espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo”, como em Oswald de Andrade que, numa crítica ao colonialismo cultural, buscara reabilitar o primitivo –, em Cruzeiro do Sul Cildo Meireles performa intencionalidade similar. Revoltando-se contra a imposição da linha divisória – portanto, contra a separação primeva entre direita e esquerda, uns e outros –, desobedecerá a tradição dialética hegeliana do sobrepujamento da tese pela antítese (dominação do elemento da direita sobre aquele da esquerda) ao professar a contaminação do leste pelo oeste. Assim, antropofagicamente, América contamina Europa; certo e errado, sim e não se imiscuem; a tese insiste sobre a antítese. Em sua crítica à racionalidade (para Oswald, por exemplo, “não tivemos especulação, mas tínhamos adivinhação”), as concepções evolutivas do pensamento, da subjetividade e da sociedade são postas em questão. Com o comprometimento do processo dedutivo – alcance da síntese –, tal como sugerido por Cildo Meireles em sua reversão da “flecha do tempo” da dialética moderna através da insurreição do oeste, problematiza-se, por fim, a própria ideia de verdade (outrora expectada a partir da síntese): “Acreditem sempre em boatos. Porque na selva não existem mentiras, existem verdades pessoais”. Ou ainda, nas palavras de Oswald, “contra a verdade dos povos missionários, (…) a mentira muitas vezes repetida”.
[19] — Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 19.
[20] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 220.
[21] — Cf Eduardo Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
[22] — “A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico”. Oswald de Andrade em Manifesto Antropófago (1928). In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. p. 69.
[23] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 232-234.
[24] — Idem, op. cit, p. 238.
[25] — Idem, op. cit, p. 241.
[26] — Idem, op. cit, p. 240.
[27] — Marilena Chauí em Crítica e ideologia (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 31.
[28] — Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 356.
[29] — “Quem responde a um tu dito por um não-humano aceita a condição de ser sua “segunda pessoa”, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não-humano (…). As aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com outrem. Tudo é perigoso; sobretudo quanto tudo é gente, e nós talvez não sejamos”. Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 397.
[30] — Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 377.
[31] — CASTRO, Eduardo Viveiros de. Se tudo é humano, então tudo é perigoso. Entrevista concedida a Jean-CristopheRoyoux. In: SZTUTMAN, Renato. Eduardo Viveiros de Castro. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 111-112.
[32] — Aparentando ser mais ou menos “verdadeiro” na medida em que estivesse mais ou menos próximo ao conhecimento e domínio dessa natureza, cujo vértice seria a ciência.
[33] — Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 380.
[34] — Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 375.
[35] — Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 113.
[36] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 184.
[37] — Padre Antônio Vieira em Sermão do Espírito Santo (1657). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 185.
[38] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 185.
[39] — Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 19.
[40] — Peter PalPélbart em Imagens do (nosso) tempo. In: FURTADO, Beatriz (org). Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games… Vol. 2. São Paulo: Hedra, 2009. p. 31-32.
[41] — Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 233.
[42] — Idem, op.cit, p. 191.
[43] — Cf. Marilena Chauí em Crítica e ideologia (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 32.
[44] — Publicado primeiramente no catálogo da mostra Information, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA, 1970), o antropófago texto Cruzeiro do Sul recoloca a questão do “imperialismo” numa chave antieconômica, de contaminação. Divergente da posição “de subtração anti-imperialista” então comumente entrevista – que previa “que o progresso [nacional
[45] — Eduardo Viveiros de Castro em A imanência do inimigo (1992). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 291.
[46] — Lygia Clark em A descoberta da linha orgânica (1954). Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=6.
[47] — Eduardo Viveiros de Castro em A imanência do inimigo (1992). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 292.