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Pesada peça branca, bloco de gesso moldado à forma de um imenso dedo. Impossível içá-la. Para arrastá-la, tamanha força o corpo enverga que o esforço transparece no rosto, no torso, nos braços, na planta descalça dos pés.
O artista [1] se impõe o sacrifício como uma forma de expurgo, depuração. O corpo não subleva, é posto a serviço de algo maior. A medida em que ocorre o deslocamento, a matéria no asfalto se desgasta e deixa a marca de uma linha ambiguamente rígida e oscilante. O traço se vai criando certo, ângulo reto, atravessando a via, vencendo a aspereza da superfície. Repete-se o ato à exaustão.
O desenho surge. Corpo em risco, mas atento, em meio ao fluxo. Não vemos o que está pré-determinado, o motivo que lança o artista na busca do traçado, com ímpeto obsessivo. Desvelá-las, as linhas, é preciso.
Desde cedo, poderosos vetores imaginários tomam de assalto o seu campo de visão, atrapalham o passo, alteram-lhe o ritmo. O fardo auto-imposto remete à intensidade da interferência com a qual convive. Como em um rito, invoca a cura a cada novo traço empreendido pelo corpo extenuado.
Contudo, ainda que porventura pudéssemos atribuir à arte um potencial curativo por meio da catarse, a ação não se resume a isto.
Para além das motivações individuais do artista, seu ato recobra e amplifica o desejo humano básico, universal, por expressar-se. Em meio ao anonimato da urbe, o sujeito insiste em deixar a marca de sua passagem, sua singularidade. O risco, índice desta presença, permaneceu por alguns dias visível após a ação, e deu corpo a um desenho de grandes dimensões só passível de ser percebido como um todo do alto.
Revertendo a obsessão em afrontado a normalidade do fluxo cotidiano da cidade, mesmo efêmera, a ação do artista gerou interferência e impregna na memória de quem a presenciou.
[1] — Sérgio Vasconcelos, em performance intitulada Linhas do imaginário