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O SPA das Artes 2007 abriu a programação deste ano com um coquetel e o lançamento da ReviSPA na segunda casa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, que fica no Pátio de São Pedro. Depois de circular para conseguir um exemplar da publicação e tentar compreender um pouco como estavam divididas as atividades da abertura do evento, uma vez que tudo parecia estar ocorrendo ao mesmo tempo, eis que foi possível chegar em tempo de ver a performance da carioca Daniela Mattos, no térreo do Mamam no Pátio.
A artista iniciava Make Over (trabalho que foi recentemente apresentado em São Paulo, bem como, no ano passado, na Eslovênia), que faz referência ao termo “make up”, que em língua inglesa quer dizer maquiagem. A idéia de se maquiar sugere, entre outros aspectos, os momentos em que o ser humano se prepara para uma determinada situação pública e coloca sobre si a personagem que vai entrar em contato com outras, em quaisquer que forem as ocasiões. É o momento em que se diz que alguém sai de um estado considerado natural e coloca uma máscara feita de perfumes, cremes, roupas e outros acessórios para atuar em um espaço de convivência comum.
A questão que se coloca no âmbito do cotidiano é: em que estes espaços se diferenciam? No setor da arte, a observação da performance de Daniela Mattos questiona o que faz dela (ou de qualquer outra pessoa que ocuparia o seu lugar) uma artista e em que medida aquela mulher que está diante de uma mesa cheia de objetos pessoais e uma câmera fotográfica polaróide, em que registra alguns de seus gestos, está em seu estado natural ou em seu estado performático. Ela desenvolve o trabalho migrando entre uma situação e outra e isso reforça o diálogo entre o que se diz que é vida e o que se atribui à arte, e de que maneira eles se integram ao longo da rotina de alguém que se revela artista.
Embora a intenção de Mattos fosse refletir que “a natureza artística” não acompanha alguém em todos os momentos de sua existência e nem se manifesta apenas em condições de exibição pública, a performance também traz à tona aspectos que dizem respeito à relação entre arte, desejo e poder. Diante daquela mesa ela podia tudo que os observadores, teoricamente, não podiam: gritar, fazer careta, dar língua, sorrir, chorar, acariciar um cofre da Hello Kitty ou se largar na cadeira e deixar os olhos vagarem pelo espaço do Mamam no Pátio, até encontrar algo que lhe interessasse e fixasse atenção, sem se preocupar se havia gente esperando pelo seu próximo passo.
A condição de arte a que o seu trabalho foi alçado conferia a ela o poder de exorcizar desejos que os outros não podiam, a não ser que fossem convidados a participar do trabalho, o que os retiraria da condição de observadores. Nesse sentido, Make Over embora questione as fronteiras entre vida e representação, existência humana e existência artística, inquieta na medida em que faz pensar se apenas quem faz arte tem o direito de abrir-se ao ilimitado e não ser acusado de estar “fora do estado normal” ou se, para trafegar nesses setores que transcendem o senso comum, é preciso agregar o título de artista.
É claro que esta discussão é antiga e sempre acompanhou o fazer artístico, mas no trabalho de Daniela Mattos ela grita porque acende o conflito entre o espaço cotidiano e o espaço artístico. No primeiro, a liberdade de transcender está na área privada, enquanto o ambiente público exige a personagem que vai se comportar de acordo com certos princípios estabelecidos mutuamente. O espaço artístico, por sua vez, inverte esta condição e permite que se possam ultrapassar as fronteiras em público. A personagem, aqui, pode agir como se estivesse dentro de casa, sem ser considerado alguém que “quebrou as regras”.
É neste sentido que os espelhos com os nomes arte e vida, virados um de frente para o outro, de modo que as palavras se confundem por causa dos reflexos, também são um ponto-chave do trabalho de Mattos. A oposição entre eles também serve para refletir sobre as perspectivas de poder nessas instâncias. Não existe ali um único objeto em que arte e vida se integram, mas dois reflexos que se relacionam para que ocorra esta interseção, e nem sempre um processo de interação é ameno ou pouco conflituoso.
Assim, a performance de Daniela Mattos não pode ser considerada apenas uma interrogação sobre o ser e o estar artístico. Talvez este seja o mote principal, mas as caretas, a impaciência, os gestos exagerados, o canto doce de “sempre Daniela”, e o rosto e braços pintados com batom vermelho transcendem o refletir sobre o artista e criam uma onda de desassossego quando fazem o espectador perceber, por meio da arte, que atuar no espaço cotidiano é bem menos prazeroso.