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Tenho andado bastante preocupada quanto aos rumos da nossa arte pernambucana. Pessoas mandam projetos para participar do SPA (e conseguem aprová-los) como se estivessem concorrendo a uma vaga para o Big Brother. Parece-me que há um grande equívoco — que o discurso da arte contemporânea vulneravelmente colaborou para (por ser uma arte que se utiliza de materiais e temas cotidianos, confundindo, ou melhor, fundindo arte e vida) — de que ser artista e fazer arte é uma coisa banal: qualquer um faz, qualquer um pode, basta ter uma boa sacada.
Vejam bem, fazer artístico e obra de arte são coisas diversas. Nem todo mundo que pinta, modela argila, esculpe pedras, age performaticamente é artista. Nem todo mundo que (de maneira superficial) tem boas idéias utilizando-se de formas previamente legitimadas pelo sistema está fazendo arte. É necessário bem mais que isso. Quem se destina a fazeres artísticos sem um compromisso consigo, e com o seu tempo, em fazer pesquisas substanciais dispõe-se a fazer mero entretenimento e não arte.
Ora, quando falo em pesquisas não estou, absolutamente, pressupondo que uma obra de arte precise de uma extensa defesa teórica para existir no mundo. Mas falo de atos processuais ou resultados-obras, que sejam capazes de demonstrar preocupações investigativas acerca de temas, como também de materiais, tecnologias e suportes (os aspectos formais inteligentemente articulados criam, ou modificam significados). Arte é coisa nova posta no mundo, mesmo que esta seja concebida com o intuito de ser coisa antiga desconstruída e/ou desmitificada.
Arte é o objeto, ambiente ou ato re-significados. Ao artista, cabe essa construção de significados outros para significantes vulgarizados por nosso uso diário. É nesse contexto que Assombração, um trabalho de Ana Lu, se insere — é uma investigação, antes de tudo, sobre pintura, temporalidades e espaços.
Queremos fixar o ser e, ao fixá-lo, queremos transcender todas as situações para dar uma situação de todas as situações. Confrontamos então o ser do homem com o ser do mundo, como se tocássemos facilmente as primitividades.
Gaston Bachelard em A Poética do Espaço.
A artista, em suas ações/pinturas, dá materialidade à imaterialidade. Ela presentifica a ausência contornando, com pincel e tinta vermelha, a sombra (de objeto ou pessoa) projetada em determinado instante — seja por luz natural ou artificial. Ela quer capturar nossas “cargas ocultas” como antes se pretendia fazer nas cavernas das eras primitivas — pintura como atos de magia.
Ana Lu ora pinta sua própria sombra, ora avermelha o contorno dos corpos projetados nas paredes dos passantes criando uma composição equilibrada. A escolha de alguns muros de casas — lugares quase sempre abandonados, no centro da cidade — não é aleatória. Existe uma vontade de reescrever uma história, de marcar a sua passagem por aqueles lugares que pressupõem outras passagens. Quando, num primeiro momento, ela se movimenta — na procura de tornar um pouco menos efêmero seu passar — pintando seu índice em determinado lugar, como quase uma dança ritualística.
Num segundo momento, ela reescreve nosso itinerário quando nos convida a participar de sua ação. Há uma espécie de lei invisível que nos faz andar por aí, pelos espaços urbanos, sem consciência de nossos momentos. No cotidiano, nossa passagem parece irrelevante, porque é efêmera e quase sempre imperceptível. Mas a artista com tinta, e desejo, transforma nosso itinerário em marca — o indício de nossa presença. E a lei, que antes invisível, se revela: nossas passagens diárias, por lugares e pessoas, criam linhas e o que fica ali registrado, então, são geometrias desses encontros — com esses lugares e pessoas nos tangenciamos, suavizamos arestas, criamos intersecções. Ana Lu demarca. Faz um mapa de alguns instantes vividos: sobrepostos. Dá-nos a oportunidade de perceber camadas de existências.
A ação/pintura de Ana Lu subverte pelo menos duas coisas: a pintura e a sombra. A sombra que temos por intangível ganha materialidade pelo gesto, pela tinta, e se torna fixa. Ainda que índice de determinada situação, mas acaba ganhando o significado da possibilidade de todas as outras situações. E a pintura — que historicamente se tem por permanente —, obra que se quer perene, coisa para guardar e sobreviver a inúmeras gerações, nesse caso, é efêmera, porque é feita com tinta vulgar, e em lugares que não se pretende algum tipo de preservação. Nesse sentido, é como se as substâncias dessas duas coisas trocassem de lugar – a efemeridade da sombra ganha um pouco mais de permanência com a pintura e, esta, por sua vez, podemos pensar que acaba adquirindo o caráter de impermanência da outra.
Cada obra de arte é um instante; cada obra conseguida é um equilíbrio, uma pausa momentânea do processo, tal como ele se manifesta ao olhar atento. Se as obras de arte são respostas à sua própria pergunta, com maior razão elas próprias se tornam questões.
Theodor W. Adorno em Teoria Estética.
Volto à preocupação das pesquisas enquanto artista. Ora, já é possível perceber que há uma tendência contemporânea em que os desenhos se apresentam extremamente limpos, quase que só feito de contornos — comparemos os trabalhos de bons artistas como Nino Cais, Mauro Piva, Amanda Melo. As tendências são interessantes porque são sintomas de um olhar coletivo em determinado espaço e tempo. Minha angústia é perceber que algumas pessoas que querem ser artistas, mas têm uma grande preguiça de procurar seus próprios caminhos de pesquisa, se aproveitam de aspectos formais que deram certo para alguns e os repetem. O meu encanto pelo trabalho da artista Ana Lu é que, ao contrário de alguns, ela não escolheu uma fórmula para justificar a contemporaneidade de seu trabalho. Mas todo o seu processo de investigação demonstra a opção pelo contorno porque assim lhe se deixou desvendar o modus da existência — as temporalidades se desenharam em sua frente sob formas de sombras, então ela as contornou por um desejo de captura, também da alma.
A intervenção urbana de Ana Lu, registro de suas ações/pinturas pela cidade, é desdobramento de uma outra pesquisa que se deu anteriormente e que resultou em algumas pinturas sobre suporte plástico transparente, que sob a luz, projetam uma sombra e lhes acumulam outros tantos significados. A investigação artística vai dando gênese às obras que geram perguntas e desembocam em outras obras como respostas. Então, não me venham dizer que qualquer fazer artístico é obra de arte e nem que boas idéias faz de alguém artista. Obras de arte nos incitam às problemáticas e novas possibilidades de percepção das coisas.
Por muito tempo pensei ser a assombração o medo causado pela sensação de existência de pessoas que já deixaram de existir — no entanto elas existem de alguma forma quando se fizeram capturar pela alma de alguém ou pelos espaços por que passaram. Todavia, hoje o que me assombra é ver — a partir dessas linhas de instantes mapeados por Ana Lu — o quanto não nos damos conta de que, na verdade, diariamente, somos nós que existimos como pessoas que insistimos, indolentes, em passagens quase sempre imperceptíveis, como sombras, tão irrelevantes que nos fazem parecer meros índices de um algo que deixou de existir.