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O seminário foi amplamente divulgado como não pago: qualquer um poderia participar. Embora acontecesse durante quatro dias, eis que a maioria de nós ficou intrigada ao saber que o primeiro e o quarto eram vedados à participação do público.
Logo em seguida ao PPE, um workshop de discussão e produção de textos críticos foi ministrado por David Armengol, integrante do coletivo A-DESK, formado por curadores e críticos espanhóis. Juntos, eles editam uma revista eletrônica [2] de mesmo nome.Uma experiência similar de workshop se deu em Belo Horizonte com David Torres, também membro do A-DESK. Os textos produzidos em ambasocasiões foram compilados e publicados na referida revista sob forma de dossiê [3] .
O texto que se segue é resultado do workshop realizado por Armengol.
A relação intrínseca entre verdade e justificação é revelada pela função pragmática de conhecimento que oscila entre as práticas cotidianas e os discursos. Os discursos são como máquinas de lavar: filtram aquilo que é racionalmente aceitável a todos. Separam as crenças questionáveis e desqualificadas daquelas que, por um certo tempo, recebem alicença para voltar ao status de conhecimento não-problemático.
Jürgen Habermas em “A Ética da Discussão e a Questão da Verdade”.
SOBRE PRÁTICAS E PENSAMENTO
É certo que dentro do nosso contexto contemporâneo, no qual se celebra o indivíduo psicologicamente fragmentado e polivalente em suas atividades, tem-se por corolário a pretensão de Todas as possibilidades não só no fazer arte, bem como nas práticas curatoriais e críticas. Na dinâmica de tantos afazeres e na busca de preencher todos os espaços que lhes são dados, críticos e curadores perdem, neste caminho, a oportunidade de um olhar mais reflexivo e aprofundado sobre seus próprios trabalhos – não há parâmetros.
Arrisco um diagnóstico ao ouvir falas, que transitam entre a insegurança e a incerteza, de alguns dos curadores que compuseram o Panorama do Pensamento Emergente. Creio que ainda existe (em nosso imaginário) uma mágoa rançosa em relação às ideologias pré-modernistas em que tudo seguia um cânon. Tal rancor faza maioria se abster de uma tomada de posicionamento assumidamente de caráter ideológico, receosa de estar aderindo a um moralismo impermeável e arredio. A questão é que essa falta de posição, de referência, emperra a tentativa de uma epistemologia. Os questionamentos acabam sendo superficiais, porque os discursos também o são – preocupados apenas em trazer à tona não a verdade (ainda que pragmática), mas uma justificativa de ações.
Sintomas disso é que, nos encontros de pares, o maior tempo é gasto nos relatos de entraves e tentativas de elucidações das problemáticas cotidianas sem, no entanto, desenhar um contexto e uma direção para que se traga à baila as discussões reflexivas sobre as produções (curatoriais ou críticas).
Cabe dizer que, no Brasil, temos uma fragilidade institucional. Ela começa da inabilidade (ou má vontade) dos nossos legisladores em criar uma política pública que assegure a estabilidade de nossos museus e a execução de projetos curatoriais a despeito do humor da gestão executiva (seja ela municipal, estadual ou federal). Ainda assim, não penso que isto seja suficiente para justificar um esvaziamento de significado no exercício da crítica e da curadoria.
Tivemos em Mário Pedrosa,Walter Zaninie, atualmente, em Paulo Herkenhoff, exemplos de posturas bem definidas de trabalho. Este último, alicerçado em um exercício contínuo de pesquisa, interessa-se em preencher lacunas de um passado histórico e, quem sabe, reescrever uma história da arte (sobretudo moderna) ainda hoje paulicentrada. Ora, este (ainda) não é o momento de pôr em questão juízos de valores, mas sim o de uma procura por discutir e entender que práticas são essas, ou que pensamentos emergentes são esses– que o Panorama do Pensamento Emergente prometeu apontar – surgidos sob um discurso de “compromisso geracional”. Porque, de discurso em discurso, o que pude perceber é que existe muito mais um compromisso relacional (relações de afetos e redes de trabalhos) do que um comprometimento com a geração – embora essas relações de afeto e de trabalho quase sempre se dêem entre pessoas de uma mesma geração.
O que é o compromisso geracional dentro de uma política curatorial que repete exaustivamente os mesmos nomes? A quem cabe decidir quais trabalhos são mais significativos que outros? Quem decide qualidade? Quase sempre, ao se discutir sobre curadoria, pensa-se no binômio curador-artista e tira-se dessa matemática o público enquanto agente ativo. Ora, não é uma postura um tanto quanto estreita pensar no público apenas como receptor de imagens-significados? E não, também, como um formador de opiniões? Mesmo as curadorias demasiadamente autorais não prescindemdo compromisso de uma gestão para e com o público, mormente se forem realizadasem um museu mantido mediante recurso estatal (ou municipal).
Como disse logo acima, a polivalência dos curadores e críticos, que atuam segundo as oportunidades que lhes são dadas, não importando se no âmbito público ou privado, institucional ou independente, acaba embaraçando um posicionamento claro,maquiado pelo discurso, já mencionado, do compromisso geracional. Esse é um ponto para adentrarmos um pouco mais no campo da ética.
Quero acreditar que, ingenuamente equivocados, alguns jovens curadores afirmaram adotar o preceito de que ética é pessoal, “cada um tem a sua”. Porque a razão de ser da ética é por sua parte subjetiva e, sobretudo, sua parte objetiva. Um curador que trabalha com dinheiro público tem implicações éticas bem maiores do que aquele que gere dinheiro privado. Mas, quando reclamo uma tomada de posição é muito mais por uma necessidade de construção de conhecimento (e, por que não, conceitos?), nesta instância ainda tão inconsistente que é a ciência da arte aqui, do que uma tentativa de moralizar os exercícios de crítica e curadoria.
Por fim, resta reclamar o cumprimento da promessa do panorama de um pensamento emergente brasileiro. De outro modo, o que temos é um panorama das práticas de críticos/curadores que estão emergindo e, no desejo de continuar em ascensão, desdobram-se em mil e uma atividades sem, contudo, deterem-se necessariamente na construção de um pensamento.
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Durante o seminário ficamos sabendo que o último dia era privado aos curadores convidados, porque seria o momento em que discutiriam sobre questões acerca da prática curatorial e esboçariam um documento, que posteriormente seria trazido ao público, como resultado destas reflexões.
Passado um ano, não se teve notícias do documento. Permanecem embaçados o lugar ético do crítico, do curador, do produtor cultural… Quedam incipientes as atuações e os discursos que clarifiquem o que seria, entre tantas coisas, “compromisso geracional”.
Mais uma vez perde-se a oportunidade de alicerçar a construção de um ideário brasileiro acerca dos agentes e de outras pertinentes questões das artes visuais. Assim como as políticas públicas, muitas curadorias são feitas de forma assistemática e difusa, sem produzir recortes significativos para nosso processo histórico. Fico me perguntando se atualmente muitas das grandes exposiçõesnão beiramo entretenimento, porque, a despeito dos aparatos midiáticos, das guloseimas e das conversas petit comité, estas exposições não sobrevivem enquanto pensamento…
[1] — Informações obtidas no portal Dois Pontos – Arte Contemporânea em Pernambuco [1 – http://www.doispontos.art.br/novo_interno.php?cod=605
[2] — www.a-desk.org
[3] — http://www.a-desk.org/25/