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Em assuntos de arte, a recuperação histórica do passado não é jamais desinteressada. A revisão, ou retomada de certos artistas, movimentos e mesmo épocas artísticas serve sempre à resolução de problemas contemporâneos. Entenda-se por resolução a superação desses problemas (como quereria W.Benjamin). Ou, muito comumente, o recalque deles.
Isso para dizer duas coisas precisas: 1) a recuperação do passado artístico não se dá – em geral – sem uma cegueira correlata em relação aos problemas da própria época tomada em foco; 2) o interesse verdadeiramente histórico (porque relativo à historicidade dos problemas estruturais de uma época – ou duas) está justamente nesta dialética entre iluminar/obnubilar aspectos diferentes de uma época. Este obnubilamento se refere à relação problemática que a época em vista (ou melhor, os fenômenos cuja recuperação está em curso) estabelece entre seus diversos elementos conjunturais estruturantes, ou, mais ainda, que estabelece com os momentos históricos que a antecedem e a sucedem imediatamente.
E que fenômeno, ou conjunto de fenômenos artísticos, nossa própria época histórica privilegia no passado?
Há pelo menos uma década e meia – após a ocupação formalista que tomou de assalto a arte brasileira desde meados da década de 1970 e vigorou com mão de ferro nos anos 80, cuja hegemonia se encontra hoje desgastada, mas não terminada – a historiografia e a prática artística no Brasil têm se voltado para o fenômeno oriundo da década de 60 da participação, ou das proposições em aberto. Participação ativa e proposições em aberto funcionando como ruptura das formas artísticas, por assim dizer, “fechadas”. Como superação da estética (como esfera autônoma) em direção a uma integração entre arte e vida.
As relações estruturais (ou, com o perdão da má palavra, formais) entre determinadas práticas dos anos 60 – como aquelas de Hélio Oiticica e Lygia Clark – e certas práticas atuais é patente: dissolução do campo estético contemplativo e consequentemente da divisão estanque entre autor e público; utilização de materiais cotidianos (panos, roupas, objetos, por oposição ao campo representacional da tela) em vista de uma proposição “existencial”, sensível, no lugar da contemplação estética; bem como proposições “ambientais” (hoje sob a forma reificada da instalação) e relacionais de toda ordem.
Mas parece haver, entre as duas épocas, um lapso em relação aos conteúdos histórico-sociais destes procedimentos. Afinal configuram-se as duas épocas como momentos distintos: 1) um, o momento sob a égide da formação nacional (Celso Furtado, Caio Prado Jr., Antonio Candido) e 2) outro, o atual, da consciência do desmanche nacional (Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira, Paulo Arantes), da pós-nação ou daquilo que alguns autores entendem como o surgimento global de sociedades pós-catastróficas (Robert Kurz e, mais uma vez, R. Schwarz). Um lapso de percepção entre 1) o momento otimista, ligado ao ciclo desenvolvimentista no país (1930-1964) e 2) o momento posterior, da modernização conservadora e, em seguida, da desindustrialização – ou seja, o momento inaugurado pelo golpe militar (1964-1985) e sua sequência na frustrante redemocratização que, mais uma vez, não cumpriu a promessa de revirar a ordem social do país.
Lapso: falta uma mediação.
E aqui entra aquela dialética da recuperação do passado que, ao iluminar um lado do objeto histórico, obscurece seu par antitético: na tardia história da arte moderna no Brasil ao momento culminante da poética neoconcreta (e de sua superação nas obras de Oiticica do início da década de 60 – penso aqui nas Bólides, Ninhos e Parangolés por oposição aos Metaesquemas e Núcleos) [1] de uma fenomenologia do sensível e sua ênfase no sujeito da experiência (por oposição ao seu antecessor imediato, o artista-projetista do concretismo e, portanto, da centralidade do autor como engenheiro da forma), segue-se o momento que ficou conhecido por Nova Figuração (da qual fazem parte Antonio Dias, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Marcelo Nitsche, bem como os ex-concretistas Waldemar Cordeiro e Maurício Nogueira Lima), que culmina no momento que Hélio Oiticica sintetizou como o da Nova Objetividade Brasileira. [2]
É de se notar que, a partir de 1966 e tendo como novo parâmetro a obra dos artistas mais jovens (vide-se textos como “Esquema Geral da Nova Objetividade” e “Vivência do Morro do Quieto”) [3] a obra de Oiticica passa a fazer uso, pela primeira vez e a partir de então sistematicamente, da nova mediação geral que estava sob o foco dos artistas da Nova Figuração/Nova Objetividade: a imagem. [4]
Resistência ao Mundo-Imagem
Para que os artistas possam operar conscientemente num mundo tornado imagem, não se trata de efetuar uma recuperação histórica pura e simples. Os conteúdos de um uso consequente da imagem como realidade organizativa da vida social atual – sua mediação geral – deveriam rever criticamente o passado. Tendo em vista suas semelhanças e diferenças com o processo atual, rever suas falhas e demarcar suas limitações.
O processo que se inaugurava com a implantação do regime militar em 64, de uma preponderância das mídias visuais como agentes da reificação modernizante mais ampla – notada já em 1963 por Waldemar Cordeiro [5] – generalizou-se amplamente e ganhou, no quase meio século que nos separa do passado desenvolvimentista, dimensões globais anteriormente impensáveis. Ganhou o papel de estruturar a própria realidade.
Ao interesse historiográfico (que poderia ser resumido na questão: “qual o estatuto da imagem na obra de Oiticica a partir da Nova Objetividade e como ela ressignifica, sem anular, suas experiências de participação ativa?”) junta-se o interesse prático: “Qual a realidade da participação hoje? E quais suas relações com o mundo-imagem que a experiência cotidiana nos obriga a encarar?”. Assim, essa “abertura histórica” proposta abre, ao menos, um campo pouco visado pelas experiências artísticas contemporâneas.
Ou antes: um campo pouco visado conscientemente pelas experiências artísticas contemporâneas, posto que a realidade muito concreta da imagem domina a vida cotidiana. Procurar escapar à imagem mediante a esquiva, sem a tentativa de superá-la, não parece um recurso efetivo para fugir à colonização do cotidiano que as formas visuais submetem a vida social. Mais: as abordagens fenomenológicas, participativas, relacionais – a ênfase no processo criativo, que seria então compartilhado com o público, ativamente – partem do pressuposto de que existem espaços da vida não colonizados pela lógica mercantil (do qual a forma-imagem é, segundo Debord, o momento de máxima acumulação). [6] Assim, a experiência do corpo, do inconsciente, da libido – em suma, as forças criativas do humano – seriam as experiências “reais”, livres – que se oporiam à relação fetichista imposta pelo capital ao mundo social.
Poderiam sê-lo efetivamente? As abordagens relacionais contemporâneas opõem à obra fechada a apropriação de “valores de uso” puros para a arte, que – por um princípio inefável – estaria a priori fora do âmbito do “valor de troca” capitalista.
É interessante observar que a reificação do processo criativo nasce precisamente da recusa da reificação implícita em toda obra de arte. Assim, [o] Dada, que procura constantemente negar o objeto artístico e abolir a própria idéia de ‘obra’, acaba mercadorizando paradoxalmente a própria atividade espiritual. O mesmo pode ser dito dos situacionistas que, na tentativa de abolir a arte realizando-a, acabam, pelo contrário, dilatando-a para a existência humana inteira. A origem desse fenômeno encontra-se provavelmente nas teorias de Schlegel e de Solger sobre a chamada ‘ironia romântica’, que se baseava precisamente sobre o fato de se assumir a superioridade do artista (ou seja, do processo criativo) com respeito à sua obra, e levava a uma espécie de referência negativa constante entre a expressão e o não expresso, comparável a uma reserva mental. [7]
Mas a reserva mental do artista (agora compartilhada com o público na esfera criativa da participação) seria suficiente para barrar os processos objetivos (e objetivantes) do capital numa sociedade que às técnicas disciplinares (Foucault) somou as técnicas de controle (Deleuze)? Ou faria antes parte de um jogo de inversões no qual a experiência direta original, negada de princípio pela sociabilidade capitalista (na qual rege a mediação geral da forma-mercadoria), torna-se o seu oposto? O oposto da experiência direta: a mercadorização e reificação das experiências corporais, participativas, sensíveis, etc – agora tomadas como um fim em si.
A hegemonia que a indústria cultural, como nova forma de totalitarismo (Adorno), alcançou nos últimos trinta anos efetua menos uma cisão entre a experiência mental (contemplativa) e a experiência direta (do corpo, dos sentidos), do que o rebaixamento de toda experiência. Rebaixamento de toda experiência que não esteja submetida à hiper-realidade da imagem.
Não se trata, é certo, de aderir ao sistema de imagens, mas de começar a compreender sua existência real, em vistas de intervir nessa hiper-realidade. A realidade da colonização do eu por imagens de toda ordem parece ser a experiência sensível (e frustrante, certamente) a qual uma arte não formalista – que deverá servir à resistência – deveria tentar responder.
Mas quais são, dirão vocês, as vias da resistência? Mal se começa a percebê-las. Os bons artistas, que são raros, já sabem como tomá-las. Também não têm escolha. A resistência não é a delinquência (pirataria, sabotagem e outros). Opera sempre na imagem. No interior do sistema. No coração do controle. Trata-se de inventar uma outra agit-prop que seria virtual: retórica do desvio, da sobrelanço e da zombaria. [8]
[1] — A superação do neoconcretismo nos trabalhos de H.O. se dá menos como ruptura do que como desenvolvimento. Neste sentido a intuição de Mário Pedrosa, feita no calor da hora, é ainda a fonte mais confiável, em termos de uma dissociação do momento neoconcreto propriamente dito e o prosseguimento das experiências de Oiticica. Ver: PEDROSA; Mario. Os Projetos de Hélio Oiticica; Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III, Organização Otília Arantes. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 341-343; 355-360.
[2] — Para a superação do “momento otimista” da geometria por um “reconhecimento trágico” mediante o apelo da Nova Figuração ao imagético na arte brasileira dos anos 1960, ver: MARTINS, Luiz Renato. A Nova Figuração como Negação. In: Revista Ars n. 8. Revista de pós-graduação do Dept. de Artes Plásticas, CAP-ECA-USP. São Paulo: CAP-ECA-USP, 2007, p. 62-63.
[3] — OITICICA, Hélio. “Esquema geral da Nova Objetividade”, texto do catálogo da exposição Nova Objetividade, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967. Republicado em OITICICA, Hélio. Hélio Oiticica. Catálogo. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 1997, p. 110-120; “Vivência do Morro do Quieto”, escrito em dezembro de 1966. Publicado em BASUALTO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosacnaify, 2007, p. 218-220.
[4] — Veja-se, como exemplo, a primeira delas, Bólide-Caixa 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (1966), cuja estruturação mediante a imagem delineia um programa que será seguido posteriormente nas fotomontagens de Subterranean Tropicália Projects (1967-9), nas Cosmococas da década de 70, entre inúmeros outros trabalhos.
[5] — “A nova figuração denuncia a coletivização forçada do indivíduo levada a efeito mediante os poderosos meios de comunicação atuais (TV, cinema, rádio e imprensa), a serviço de uma oligarquia financeira cada vez mais ávida de lucro. O pomo de Adão é a coisa e a gula é paga com alienação. A coisa talismã da segurança na filosofia do conforto. Possuir as coisas, a qualquer custo, é a pobre ideologia dos alienados.” CORDEIRO, Waldemar. VII Bienal: Nova Figuração denuncia a alienação do indíviduo. Brasil Urgente, I, 40, dezembro de 1963. In: AMARAL, Aracy (org.). Waldemar Cordeiro: uma aventura da razão. Catálogo de Exposição. São Paulo: MAC-USP, 1986. p. 119.
[6] — Debord: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14, 25.
[7] — Debord: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14, 25.
[8] — MICHEL, Régis. Farocki: o olho-máquina. In: Revista Margem Esquerda 12, São Paulo: Boitempo Editorial, novembro de 2008. p.134.