www.revistatatui.com.br
De modo geral não é raro constatar – principalmente fora do circuito da “grande arte” – um raciocínio segundo o qual o simples fato de haver um indivíduo que assine como curador pareça se bastar, como se isso por si agregasse de pronto algum tipo de glamour extra ao produto/evento, como um selo de inefável qualidade respaldada pela presença deste profissional. Esta movimentação só se pode explicar, a meu ver, como manifestação de certo deslumbramento ainda algo provinciano em torno de uma função da qual pouco realmente se sabe e se pode exigir mas que, amplamente difundida e abalizada no prestígio que atingiu sobretudo no exterior, torna-se subitamente “indispensável”. O que leva ao estabelecimento de uma dinâmica emque se vê mais “curadorismos” que curadorias…
Atendo-nos ao meio da arte [1] , cabe lembrar que designa-se sob a mesma terminologia mais de uma função profissional específica: é preciso dissociar a que este texto busca tratar daquela do curador institucional, que atua em cargos fixos em museus, fundações culturais e similares e que é tido antes de tudo como um especialista. Esse é o profissional que irá orientar a instituição principalmente na aquisição e formação de acervo no âmbito de sua área de especialidade, dentre outras funções. Grandes museus possuem diversos curadores, nomeados especificamente para suas áreas de expertise: arqueologia, fotografia, pintura, tapeçaria, design, etc.
Já a prática curatorial aqui em foco se refere ao personagem que, no âmbito das artes visuais, parte de uma determinada ideia, assunto ou tema devidamente conceituado [o que não necessariamente significa fazer um uso fetichizante da teoria] para propor uma situação expositiva em que este assunto se articule a uma presença material, tradicionalmente por meio de obras de arte. Tal função abrange ainda, idealmente, a concepção e acompanhamento de estratégias e soluções espaciais de montagem dos trabalhos, além da produção de um texto.
Um ofício que, cabe lembrar, não se deve confundir necessariamente – embora isso muitas vezes aconteça – com o do crítico nem do historiador de arte; embora não autoexcludentes, cada uma dessas atividades exige em princípio certos predicados específicos, que podem eventualmente convergir num mesmo profissional. De um ponto de vista mais conservador, pode-se sustentar que um crítico de arte não deve – idealmente – atuar como curador, já que torna públicas suas afinidades e pode assim “contaminar” o juízo alheio sobre seu próprio sistema de juízos. Esta recalcitrância pode ser eticamente recomendável, em princípio; mas um bom crítico não se furtaria a expor seus gostos publicamente, sobretudo num país em que alguns de nossos grandes críticos se formaram “em público”, na imprensa – de Mario Pedrosa a Ronaldo Brito, dentre outros [isso nos tempos em que ainda havia espaço regular na mídia impressa para o exercício da crítica de arte… mas esta é outra discussão]. Tendo em mente a busca por um equilíbrio entre uma plataforma de ação mais teórica e a pulsão em realizar projetos expositivos como uma extensão mais ou menos natural desse campo de ação, não vejo as duas atividades como incompatíveis entre si a priori. E há que se manter, para além da coerência em relação à plataforma teórica do crítico [se houver uma] que se aventura na práxis curatorial, certos cuidados éticos no que tange a interesses comerciais-mercantis que permeiam essa dinâmica, sempre um fator a ser considerado.
De Harald Szeeman [curador da seminal Whenattitudesbecomeform, de 1969, Documenta V e algumas Bienais de Veneza, dentre outros projetos de magnitude] a Jean-Hubert Martin[curador de Lesmagiciens de la Terre, 1989, além de mostras de Picasso, Warhol e Cy Twombly para o MNAM de Paris], para ficar em apenas dois exemplos clássicos de curadores que impõem-se como realizadores de projetos, o dado autoral emerge como diferencial na concepção expositiva, mesmo que a serviço de pulsões conceituais bem diversas. É a epítome do curador como realizador de exposições. Mais recentemente, a partir dos anos 1990, é sensível uma diversificação em torno da noção de [prática de] curadoria. Nomes como o suíço Hans-UlrichObrist e o costa-riquense Jens Hoffmann alargam as possibilidades curatoriais e as levam a novos limites, injetando inéditas doses de originalidade no formato, ao mesmo tempo em que comentam a própria prática sob que atuam. Inclusive no que se refere aos espaços expositivos: ambientes domésticos, hotéis, bibliotecas e até mesmo aviões podem se ver convertidos em espaços abrigando mostras de arte contemporânea. A ideia de “limite” pode se radicalizar em propostas de exposições constituídas apenas de textos, por exemplo, solicitando do espectador um inédito grau de participação ou cumplicidade [nem sempre correspondido na medida desejada, é verdade] não apenas no âmbito da compreensão como da própria [in]completude ou eficácia do projeto.Investe-se numa chave de ativação dos significados a ser realizada pelo público, não raro em situações não-institucionais.
Mas voltando ao mote: o fato é que diversos segmentos da, digamos, cultura passaram a franquear o direito de ter seus “curadores”, numa atividade tão prolífica quanto relativa. Até aí tudo bem, por que não? Se até o próprio termo “cultura” tem sido tão invocado quanto mal-interpretado na última década… O problema está no que considero o equívoco, ou falta de um maior cuidado na definição sobre quais seriam efetivamente as atribuições, qualidades, responsabilidades e competência específicas que conformam o perfil de um curador. Frequentemente tenho a impressão que o termo é usado simplesmente como sinônimo de “responsável pela escolha”: assim, eventos ligados a arte contemporânea mas também a tapeçaria, fotografia publicitária, vinhos, celulares e até mesmo mostras de automóveis se apresentam de súbito devidamente “curados”. Como se uma curadoria se resumisse apenas a selecionar determinadas peças/objetos ou obras de arte para se configurar como tal. Mas a isso não podemos chamar de “organização”, “coordenação” ou o que for – como aliás se chamou por muito tempo, antes da ascensão ou disseminação do termo “curador” tal como circula hoje?
Não quero com isso sugerir uma postura negativa ou de ataque à função de curadoria de modo geral; nem poderia, já que seria incorrer em um posicionamento quase hipócrita, já que eu mesmo atuo esporadicamente como tal, e não descarto planos futuros nesse sentido. Antes pelo contrário: é por reconhecer a potencial importância da atuação do curador que me incomoda constatar como a circulação e visibilidade excessivas em torno desta função colaboraram para banalizar uma ideia geral em torno de sua atividade, criando estereótipos rasos e, mais recentemente, posicionamentos reativos a esse personagem. Estes muitas vezes obedecem a argumentos da ordem de que boa parte do sentido de proposições artísticas diversas podem se ver reduzidas ou deturpadas no processo de “ilustração” de um conceito ou plataforma curatorial. O que se verificaria em situações expositivas em que os artistas se veem convertidos de autores em intérpretes, a serviço de respaldar a proposta teórica. É um aspecto efetivamente espinhoso, sobre o qual não chego a um juízo absoluto. Se de fato há muitos casos em que trabalhos de arte se apresentam subjugados pelo mote conceitual, por outro lado é inevitável que um dado autoral aflore num projeto de curadoria; muitas vezes é o que irá determinar que uma exposição se afirme como tal. E aqui não interessa necessariamente entrar no mérito de comentar a qualidade do material ou obras expostas; a questão é encontrar esse delicado ponto de equilíbrio entre a autonomia das peças, em suas singularidades, e os diálogos e articulações [formais, simbólicas, etc.] buscados pelo projeto curatorial que as mesmas irão promover.
Seja como for, que possamos ter mais experiências de curadorias de fato, e menos espetáculo rasteiro engendrado pelo “curadorismo”.
[1] — Ao circunscrever a definição de curador no âmbito das artes plásticas, descartei deliberadamente definições mais clássicas para este termo, que podem remontar até à Roma antiga; além de não servirem ao que este texto propõe, demandariam um percurso genealógico que não cabe ser aqui esboçado.