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Ao longo das investigações, surgiu a necessidade de aproximar o foco sobre o evento, e não apenas visualizar a relação entre arte e política presente em alguns trabalhos produzidos nele. Voltar o olhar exclusivamente para o SPA trouxe à tona muitas outras questões instigantes (e problemáticas), sendo a principal delas a relação entre arte urbana e dimensão institucional. O deflagramento da crise na edição deste ano, colaborou ainda mais na decisão de dar prioridade à análise desse relacionamento, aparentemente tão paradoxal, entre ação artística no espaço urbano – experimental – e Prefeitura.
Nesse sentido, o ano de 2009 foi decisivo na minha escolha por entender melhor o SPA, visto que ficou marcado como o momento do reconhecimento de sua fase crítica. Ideias que não deram certo, diminuição da participação dos artistas, dificuldade de atingir um público mais amplo, são alguns dos obstáculos e desafios impostos à coordenação que, a cada ano, tenta resolvê-los adaptando o SPA a essas demandas. Porém, nesta oitava edição, esses desafios tornaram-se ainda mais difíceis de encarar, diante da redução drástica da verba destinada ao evento pela prefeitura.
Por ora, gostaria de compartilhar algumas impressões iniciais surgidas após um primeiro ano de pesquisa. Não se trata de teorizações ou diagnósticos conclusivos sobre qual é o problema do SPA. Nesse momento inicial, o que mais me preocupou foi o levantamento de questões para serem respondidas ao longo do trabalho que irei desenvolver posteriormente. Minha intenção, neste momento, é levantar hipóteses sobre a crise do SPA, que serão testadas durante a investigação. Essas perguntas e hipóteses iniciais têm a função de ajudar no delineamento do objeto de pesquisa e, mais além, de incitar um debate sobre o que deflagrou a crise do SPA e quais podem ser as possíveis soluções.
Sobre o SPA e a Crise
Uma das questões que acho importante ressaltar, na análise do SPA da Artes, é o fato dele ter sido criado, desenvolvido, implantado e mantido (até hoje) por artistas. Esse engajamento de artistas na esfera institucional, como criadores de políticas públicas para a arte, é um fenômeno que Sônia Salzstein identifica na história da arte brasileira como ocorrendo desde, pelo menos, os anos 1980. É o que ela irá chamar de gestão amadorística. Esse tipo de atuação institucional se caracterizava pela presença de artistas e intelectuais que pensavam e implantavam importantes projetos voltados à arte contemporânea. Os diretores e colaboradores, nestas gestões, “eram mobilizados pelo objetivo de consolidar uma arte contemporânea brasileira e, por sua vez, oriundos de áreas externas à carreira institucional, indivíduos que percebiam no Estado a oportunidade de aglutinar energias e estimular trabalhos experimentais. Foi dessa maneira tão peculiarmente brasileira que projetos artísticos radicais acabaram sendo subvencionados por ministérios ou secretarias de cultura de âmbito estadual ou municipal, patronos muito mais frequentemente de projetos conservadores e populistas.” [1] E foi a partir dessa maneira “tão peculiarmente brasileira” de institucionalização que foi possível, em 2002, o surgimento de um evento como o SPA das Artes no seio da Prefeitura da Cidade do Recife.
O SPA apresenta, pelo menos, três características interessantes em sua concepção: uma é a necessidade de ampliação do espaço para a arte contemporânea na cidade; a outra é a existência de artistas (ao invés de burocratas ou políticos) promovendo políticas públicas voltadas ao setor artístico dentro da prefeitura da cidade; a terceira é a necessidade de afirmar o caráter experimental da arte, estimulando a intervenção urbana como ação artística privilegiada.O SPA propunha apresentar os novos artistas e convidá-los a fomentar uma conversa entre a cidade e a arte contemporânea, visto que as instituições não conseguiam cumprir esse papel.
À medida em que o evento foi ampliando, alcançando importância na agenda cultural do Recife, sua contribuição inicial aos artistas também precisou aumentar, daí que, entre outras ações, foram implantadas as Bolsas de Incentivo à Produção, através das quais passou-se a proporcionar aos artistas ajudas de custo à realização de trabalhos de intervenção urbana e também de oficinas. As bolsas foram disponibilizadas através de uma seleção de projetos, segundo um edital lançado pela prefeitura. Esta ação permitiu ampliar as fronteiras do evento para além da cidade. Ao se lançar o edital nacionalmente, possibilitou-se a participação de artistas do Nordeste e de outras regiões do país, ampliando o diálogo entre a produção nacional e local e a presença artística do Recife no Brasil.
É a partir daí que a dimensão institucional do SPA se amplia e ele passa a ser uma verdadeira alternativa institucionalizada aos museus e salões de arte como espaço de apresentação, exibição e, agora, também, legitimação da produção e dos artistas. O processo seletivo é feito a partir de uma comissão composta por artistas, críticos e curadores que avaliam e escolhem quais projetos farão parte da edição do evento. O edital nomeia e lista as possibilidades de intervenção artística urbana, delimita os possíveis locais de execução dos projetos, burocratiza e formaliza a atuação artística na cidade.
Claro que o surgimento do edital de seleção não é contraditório nem absurdo, se observado do ponto de vista do objetivo maior que sempre permeou o SPA: o fomento à produção de arte contemporânea na cidade. Com a ampliação do evento e, consequentemente, com a maior disponibilidade de recursos para promovê-lo, por que não criar mecanismos mais efetivos de apoio aos artistas e às suas produções? Por que não ampliar ainda mais o alcance do evento, estendendo-o para as outras regiões do país? Mas o problema que se coloca é: e a intervenção urbana? Como conciliar obras que se configuram como ações efêmeras de intervenção no espaço da cidade com um edital? Importante dizer que, em minha pesquisa, tomo como arte urbana obras com características de ruptura, de indeterminação, de ressignificação do lugar, de diálogo com o público, de negociação com as tensões existentes nesse ambiente, conflituoso por excelência, baseada em autores como Chantal Mouffe, por exemplo.
Essa relação paradoxal entre arte urbana e edital pode estar na base da crise do SPA. Nas primeiras observações feitas, um dos principais indicadores deste momento crítico encontrado foi a diminuição da participação dos artistas – fato que leva a pensar na possibilidade de um esgotamento do formato do evento. A questão a se pensar é: não será essa relação conflituosa entre edital e arte urbana o motivo do afastamento dos artistas do SPA?
O edital, de uma certa forma, obriga os artistas a pensar em mídias específicas e a tomar a cidade como lugar de execução para o qual a obra pode não ter sido pensada. Nesse sentido, podem artistas que procuram incentivo para produção de suas obras, mas que não pretendem promover ações de intervenção urbana, sentirem-se desestimulados a participar do SPA – por este não se configurar como um espaço ideal para a execução e exposição do seu trabalho (isto apesar de o SPA já inserir em sua programação edifícios-sede onde ocorrem exposições, mostras descentralizadas, entre outras ações de exibição)? Ou, por outro lado, podem artistas que sentem a necessidade de intervir artisticamente no espaço urbano, ficarem intimidados com a presença de um edital que os leva a pensar em suportes específicos, locais e modos de agir – como uma espécie de bula de ação artística no ambiente? Será esse o fator causador da diminuição da participação dos artistas no SPA?
Além do conflito entre edital e arte urbana, o SPA ainda convive com um certo descompasso entre uma proposta experimental e as novas (e crescentes) necessidades de legitimação artística e de espaço expositivo que os artistas vêm demandando. O Recife, de uma certa forma, já entrou no mapa nacional como polo produtor de arte contemporânea. Projetos como o SPA e outros como o Trajetórias, da Fundação Joaquim Nabuco, por exemplo, deram fôlego novo à produção artística e revelaram vários jovens artistas ao mercado de arte nacional. Outros espaços expositivos abertos à arte contemporânea foram criados na cidade – como o Mamam no Pátio e o Instituto Banco Real, por exemplo – que, ainda de maneira precária e insuficiente, divulgam parte do que é feito atualmente no Recife. As galerias ampliaram um pouco mais a participação na produção contemporânea, lançando artistas no mercado nacional de arte (porém, ainda preferindo os já consagrados a trabalhar os muito jovens).
Essa movimentação, embora não configure uma estruturação institucional e mercadológica da arte contemporânea no Recife, faz nascer, nos artistas, a necessidade de se inteirar desse circuito, de entrar para o mercado de arte, ficando o SPA ofuscado nesse contexto. Ou seja, parece-me que hoje o evento é mais uma dentre as opções de inserção em um circuito institucional. Mas uma das menos eficazes, visto que é efêmero e não mantém, nem reproduz, o que é produzido nele por muito tempo. A maioria dos jovens artistas – o foco maior do SPA – busca a legitimação e, para muitos, essa é a razão de inscrever um projeto de intervenção urbana no SPA das Artes. Diante da necessidade crescente de inserção no mercado e legitimação, por parte dos artistas, as propostas do SPA podem estar em esgotamento.
Por isso, cabe perguntar aos coordenadores, participantes, pesquisadores, jornalistas e a todos os interessados pelo evento: deve o SPA mudar de formato a fim de se adaptar às novas necessidades artísticas crescentes? Ou manter-se com a proposta de experimentação artística, voltada para pensar o urbano? Longe de querer predizer qual será o futuro deste evento, sinto que – diante do quadro brevemente esboçado – mudanças profundas ocorrerão em suas edições posteriores. Vejo um SPA com muito mais espaços expositivos, com muito mais propostas voltadas à inserção dos artistas em um circuito de mercado de arte e pensando menos na questão da arte urbana. Se essa minha leitura está correta ou não, só o próprio SPA dirá. Mas, se assim continuar, o Recife perderá um importante e necessário espaço para a reflexão e a execução da intervenção artística urbana. De minha parte, continuarei observando, lendo e conhecendo o SPA, tentando trazer alguma contribuição ao seu processo de reflexão e mudança. Enquanto isso, torço: que a cidade mantenha esse importante lugar por ainda muitas outras edições.
[1] — SALZSTEIN, Sônia (2001). Uma dinâmica da arte brasileira: modernidade, instituições, instância pública. In:Basbaum, Ricadro (org). p. 400.