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Sabe-se que esse dualismo, discussão teórica X proposições artísticas, acompanha boa parte das grandes exposições. Como é de se esperar, muitas vezes não é possível ler nos objetos o que a reflexão escrita sugere, nem antever no texto obras de arte. Ou seja, é até interessante e positivo ver como os trabalhos escapam às leituras e não se limitam a uma ou outra abordagem ocasional. Por isso, não é exatamente este aspecto que interessa criticar em uma exposição. A crítica a um projeto do gênero se desenvolve, principalmente, sobre aquilo que é visível: a dimensão expositiva do evento.
Claro que também é interessante nos debruçarmos acerca da1 pertinência das discussões propostas em uma bienal – suas estratégias e “bandeiras” – mesmo quando esse todo não coincide com o que é exposto. Agora, há sim uma hierarquia entre esses campos e o que interessa em primeiro lugar sempre são as obras. E mais: é notório que, quanto maior a quantidade de bons trabalhos, menos interessa a discussão teórica que norteia a seleção. Ao mesmo tempo, tal discussão passa a fazer sentido quando a qualidade prevalece. Já quando acontece o contrário, uma mostra fraca em termos de proposições artísticas, a questão central da mostra pode ser desvalorizada pela fragilidade estética do que está exposto.
Esta Bienal do Mercosul levantou questões muito interessantes de serem abordadas e debatidas: o processo artístico, o papel do artista no sistema das artes, a curadoria como obra. É lamentável que a maior parte dos trabalhos reunidos na mostra estivessem aquém do debate proposto. Mostras como Absurdo, Árvore Magnética e Projetáveis apresentavam obras que, na maior parte, mais ilustravam conceitos como adversidade, transformação, interatividade, do que se valiam deles para existir.
Artistas curadores e curadorismos
Os dois grandes eixos complementares de discussão dessa bienal eram o processo artístico e o artista. As sete exposições que compunham a mostra e a rádio da bienal se desdobravam em vieses desse processo artístico, sem contudo se fixarem radicalmente em suas premissas – o que em arte é positivo. E dos 10 curadores envolvidos no evento, nove eram artistas.
As melhores exposições da bienal foram Texto Público, com trabalhos espalhados no espaço urbano, Desenho das Ideias, no MARGS e Ficções do Invisível, no Armazém A4. Dessas, Ficções e Desenhos foram curadas por Victoria Noorthoorn, a única não artista da equipe. Considero essas três mostras as melhores pois continham um número grande de obras com qualidades formais e conceituais. No caso das exposições da Victoria, que aconteceram em espaços fechados, também podíamos notar a noção expandida dos conceitos que norteavam as seleções. A questão do experimento, da anotação, nas obras do MARGS, e da autorreferência nas do Armazém A4, pareciam compor o conceito das exposições junto com a curadoria. Quer dizer, não eram ilustrativas: problematizavam as proposições teóricas que as embasavam. Por exemplo, na exposição Desenho das Ideias, poderíamos citar a série de vídeos de Maria Lúcia Cattani, que apresenta a questão do desenho como um modo de olhar e não de “gesto”. Já na exposição Ficções do Invisível poderíamos citar o registro da performance Samba do Crioulo Doido de Luiz de Abreu, na qual o artista é personagem e sujeito da ação.
A conclusão desse comentário não é que artistas não podem ser curadores, mas sim que artistas não precisam ser curadores.Geralmente um artista é melhor como artista, geralmente um curador é melhor como curador. Geralmente.
A bienal ainda nos apresentava cinco outras exposições, sendo que uma delas, a Projetáveis, reunia trabalhos selecionados via edital público. Como iniciativa, a ideia era muito interessante, já que esse é “o” mecanismo atual de inserção no circuito de arte. Logo, uma bienal pode apontar e, ao mesmo tempo, se valer desse tipo de estratégia. O resultado, entretanto, foi aquém das expectativas. De longe, essa mostra reunia os trabalhos menos potentes da bienal, com obras ingênuas quanto às discussões sobre tecnologia, de má qualidade técnica e, ainda por cima, expostas de um modo esdrúxulo e descuidado. Com certeza, o maior problema está na seleção e museografia dos trabalhos, pois revelam a incompetência da equipe em apontar obras que abordassem e se valessem, de maneira pertinente e interessante, do mote tecnológico que norteava a exposição.
Ingenuidade também era a tônica dominante na mostra Árvore Magnética, que previa a modificação dos trabalhos ali reunidos para a discussão sobre obra viva. Ora, se entendermos que para uma obra estar viva ela precisa sofrer alterações físicas, não poderíamos jamais reler Alice: saber que tudo não passa de um sonho da personagem, não acaba com o País das Maravilhas.
O trabalho de Jonathas de Andrade, Ressaca Tropical, presente nessa mostra, é uma instalação de fotografias articuladas com páginas de um diário. Entre imagens reconhecíveis de uma Recife não muito distante, anotações de um homem comum e cenas de lazer desterritorializadas, a obra nos permite um ir e vir – construção de sentidos narrativos complementares –, que são o resultado da combinação entre o realmente exposto e a história de cada espectador.
Por fazer parte da Árvore Magnética, a obra de Jonathas reconfigurava sua organização espacial periodicamente. Ou seja, mudavam a ordem das fotos, a sequência das páginas do diário e a disposição dos suportes, que ora formavam uma linha reta, ora uma sala, ou outra coisa qualquer. Esse tipo de “movimento” acontecia em todas as obras da mostra. A Módulo Lunar, de Paulo Nenflídio, era de fato uma máquina e por isso estava “encaixada” no “conceito” da mostra. Realmente, foi constrangedor ler a exposição sob o viés proposto, que ressaltava o movimento e a interatividade como valor em si, independente da necessidade interna da obra de ser lida sob esse prisma.
Ainda na Árvore Magnética, um problema ético e que de tão praticado parece perder importância: ao que tudo indica, mais uma vez na Bienal do Mercosul tínhamos um curador chileno, Mario Navarro, apresentando como uma das artistas da sua mostra a esposa, Francisca Garcia. Isso já aconteceu por essas bandas outras três vezes, sempre com o Chile. Independente da qualidade do artista, não posso me convencer de que é legítimo isso acontecer. Como diz um amigo meu, em política a elite cultural é sempre de esquerda, mas na prática artística há muitos malufistas.
Quaquaqualidade X qualidade
É claro que nem todos os experimentalismos curatoriais foram tão malsucedidos como a exposição de Navarro. Em meio a outras ideias mirabolantes, tínhamos um oásis: a já citada mostra Texto Público, curada pelo artista Arthur Lescher. Programada para acontecer no espaço da cidade, essa exposição reunia obras realmente instigantes e apresentava o que se espera do trinômio curadoria X artista/obra X instituição. Exemplo: a obra de Henrique Oliveira, Tapume. Tratava-se de uma intervenção escultórica numa casa abandonada do centro da cidade. Trabalho construído com compensado flexível, tínhamos a impressão de que, das aberturas do imóvel, “brotava” uma massa disforme e orgânica, como se esta derramasse em direção ao exterior da casa. A obra tornava visível o imóvel, que se encontrava neutralizado pela profusão de edifícios e estabelecimentos comerciais surgidos ao seu redor nas últimas décadas.
Esta foi a primeira vez que Henrique realizou uma intervenção fora dos espaços expositivos tradicionais. A percepção da sintonia entre a obra e a cidade, a radicalização dessa relação ao trazê-la para o espaço público, surgiu das conversas entre o artista e o curador. A partir daí fez-se necessário uma negociação entre instituição Bienal e prefeitura municipal, dona do imóvel que incorporou a obra.
Ou seja, fica evidente como é interessante quando um curador tem a capacidade de se colocar como um interlocutor ativo do artista, pensando com ele a sua obra e, a partir daí, assumindo a parte burocrática do processo para viabilizar a realização do projeto. Aí temos um exemplo real de obra viva, que segue se pensando enquanto ser no mundo e encontrando impasses no caminho.
Para colocar o artista no centro da discussão sobre arte não é necessário criar simulacros de igualdade, forçando-o a desempenhar um papel que tem muito de mediação entre o institucional e o conceitual, e que requer uma habilidade específica. É claro que o trânsito entre papéis predefinidos é bem-vindo e salutar, contudo apenas quando existe uma inquietação interna nos sujeitos que justifique a inversão do lugar de enunciação. Além disso, mais uma vez vimos artistas não recebendo cachê e sendo hospedados em hotéis diferentes dos curadores. Ou seja, nem a mais banal, óbvia e recorrente questão dos artistas não receberem para expor, foi expurgada.
Um viva à experiência [1]
Todas as críticas feitas até aqui só puderam ser realizadas porque um grupo de pessoas resolveu ousar, apostar e experimentar outras possibilidades de se fazer bienal – modelo expositivo centenário e que cada vez mais é um recurso para legitimar diferenças e dinamizar economias. Se muitos dos aspectos conservadores desse tipo de evento não foram sanados, como a eterna batalha por cachês para artistas ou exposições um tanto formalistas, tivemos a oportunidade de ver e acompanhar um processo de investigação do fazer curatorial.
O entrosamento entre a equipe era notório, as discussões públicas sobre a conformação da mostra se revelaram agregadoras e estimulantes. A programação de cinema e palestras, que antecedeu a abertura do evento, e as residências artísticas, realizadas desde o meio de 2009, também foram instigantes e auspiciosas. No entanto, como foi dito, o resultado expositivo ficou aquém das expectativas. Foi o caso de apostar em premissas não qualitativas: na definição da equipe curatorial, por exemplo, insistir que os curadores precisavam ser artistas, independente da habilidade curatorial; ou estipular que as obras precisavam se modificar fisicamente, a fim de indicar a própria vivacidade.
Experiência realizada, abriu-se caminho para repensarmos, além das páginas das revistas, o fazer curatorial nos megaeventos de arte.
[1] — A Bienal do Mercosul, desde a sua quinta edição, vem apresentando propostas curatoriais que fogem ligeiramente ao lugar comum e, o que é melhor, que se transformam em conquistas para a equipe subsequente. Em 2005, Paulo Sérgio Duarte conseguiu dar o pontapé definitivo para a abertura do evento, fazendo com que a bienal deixasse de apresentar somente obras de países latino-americanos. Depois foi a vez de Gabriel Perez Barreiro, que realizou como curador geral uma série de pequenas exposições para compor o evento e uma mostra que previa a participação dos artistas na sua configuração. Em 2009, o grande passo da Bienal foi ter criado um processo de seleção para o projeto curatorial do evento e ter apostado numa proposta ousada.