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“A mesmice da normalização provoca um olhar saturado de aceitações. Somos obrigados a nos guiar por setas e direções alheias. Tudo muito claro, tudo muito reto, tudo muito certo. Certo como uma placa proibindo de se estacionar escondida atrás de uma árvore e tomar uma multa por isso (…). A automação dos cidadãos normalizados imputa um olhar adestrado e amputa a subjetividade e a surrealidade inerente à nossa complexibilidade” [1] .
A modificação das placas de trânsito fez com que o grupo Don Quijote construísse uma forma de dialogar com o espaço urbano: “A escolha das placas não se deu por motivos anárquicos, com o intuito de aumentar o caos que há no trânsito. A escolha nasceu quando passamos a encarar as placas como uma mídia de alcance direto ao cidadão, altamente disponível e sem intervalos comerciais.”²Através dessa linguagem, suas intervenções apontaram-me a necessidade da discussão sobre a recriação de um imaginário simbólico contemporâneo. Tal intervenção urbana, desdobrando-se enquanto experiência artística, gerou-me uma avalanche de questionamentos sobre a interação dos indivíduos com o ambiente ao seu redor, assim como a participação da sociedade no processo de recriação do espaço público.
O símbolo aqui é um elemento importante na tentativa de pensar tais questões, pois será empregado a partir da ideia de sua utilização como código que traduz e unifica, por convenção, percepções acerca do real. Um tipo de generalização que conceitua diversos elementos em uma única categoria cuja função é a mediação das nossas relações com os outros e com o meio, dando sentido à forma de perceber o mundo e agir sobre ele. Havendo, no caso específico da sinalização de trânsito, a redução da polissemia a partir de convenções estatais e a sistematização da informação simbólica. Dessa forma, as placas de trânsito são consideradas pelo grupo informações que configuram uma forma de “controle do pensamento” e das ações dos indivíduos. Tais intervenções despertam questionamentos sobre “a automação dos cidadãos e as infinitas proibições impostas sem qualquer discussão sobre espaço público” [2] .
Na alteração das placas percebe-se uma sátira bem-humorada das instituições e estabelecimentos localizados, geralmente, nas redondezas das sinalizações. As figuras são confeccionadas pelo grupo nas cores preto e branco, possuindo um design semelhante aos sinais vistos no trânsito, entretanto o que desperta atenção é a multiplicidade de imagens inesperadas.Depois das noites de ação dos interventores, as ruas e avenidas da capital paulista amanheciam com várias figuras cobrindo principalmente as sinalizações arredondadas: “É uma interferência parecida com o grafite, mas tem outra linguagem. Ao invés de depredação, é uma retomada do espaço público. Aparentemente é predatória; mas não é. Essas imagens grudadas servem para discutir o espaço público.” [3] Impulsiona-se a necessidade de participação dos indivíduos na criação e organização desse espaço. Caso contrário, este tende a sofrer um processo de total regulação seja estatal ou privada, que bloqueia o reconhecimento do espaço público como um local de vivência e criação coletiva. A intervenção do grupo Don Quijote é uma tentativa de ação que se configura na retomada desses espaços pelos indivíduos. O próprio grupo declara: “A cidade é o espaço para nossas ideias e ideais, e sua porosidade legalmente protegida tem de ser estuprada para receber novas visões. É certo que foram estes questionamentos e percepções que motivaram o senhor ‘Don Quijote’ a intervir em placas que possuem setas a apontar, proibir e permitir caminhos um tanto incertos” [4] . Ou seja, dar-se a criação de novos símbolos e significados que virão a argüir os anteriores e, de uma forma mais geral, o aprisionamento do olhar no condicionamento cotidiano.
O problema da automação dos indivíduos está diretamente ligado à internalização dos sistemas simbólicos, sem que haja o questionamento da legitimidade destes. Portanto, a ação de colagem das novas imagens ressignifica os sinais de trânsito, pois é uma maneira de deixar as pessoas perplexas com o encontro de um símbolo ao qual não estão acostumadas, causando não somente um estranhamento, como indiretamente provocando a reflexão sobre a validade ou legitimidade dos sinais internalizados por ‘imposição social’.
Apenas três exemplos serão satisfatórios à ilustração do caráter interventivo das obras. O primeiro é um adesivo intitulado Um Buda negro na Cruz de Exu posicionado nas sinalizações em frente às igrejas evangélicas e católicas. Com um ótimo e claro trabalho visual gráfico podíamos perceber no adesivo uma fusão de doutrinas religiosas, abrindo uma fértil discussão sobre o sincretismo.A temática retornana placa intitulada pelo grupo: Jesus também meditava rapaz. Já em frente a instituições culturais renomadas da cidade a referência é a alteração denominada pelos interventores: Duchamp: do Museu para as Ruas. O adesivo criado remete a uma das obras mais famosas e polêmicas do sempre citado Marcel Duchamp.Não reverenciado à toa. A influência do dadaísta pode ser percebida na filosofia do Don Quijote, pois para além da placa citada o grupo possui uma inspiração duchampiana que converge na criação de alternativas de expressão que fogem das categorias tradicionais e dos hábitos arraigados de consumir arte e cultura. Inventando novas formas de expressão artística que desperta o olhar de outros espectadores dentro dos antigos.
É nesse sentido que entendo o movimento do qual trata o filósofo Espinosa diante do poder de um corpo de afetar e ser afetado pelos outros corpos, sendo este definido pelos afetos de que é capaz. No caso do grupo, podemos dizer que isso irá se traduzir na pulsão lírica que as obras adesivadas transmitirão aos corpos afetados. Através da potência criativa, o poder de afetação se faz constante, causando desorganizações no código individual pré-estabelecido no sistema, podendo ser traduzido talvez pelo conceito deleuziano de “desterritorialização”. Na recepção de informações não programadas, se dá a reorganização do pensamento do indivíduo, que terá como referência a quebra do pensamento adestrado causando, por vezes, a organização do novo. Ar essignificação do espaço público recria os sistemas simbólicos internalizados por cada um de nós, como diria uma citação do filósofo Gilles Deleuze: “o interior é somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado”. Partindo dessa perspectiva, o espaço nada mais é que uma projeção de nossos sistemas simbólicos internalizados. A partir do momento que o indivíduo atua de maneira a transformar o externo, ressignificando-o, também transforma e recria a si mesmo: o espaço público precisa ser problematizado e utilizado como lugar de emancipação e diversidade.
Escolhido por claras motivações, o nome do grupo se entrelaça a suas práticas casando a ideia da potência criativa como fonte de afetação dos corpos. Segundo o próprio grupo: “Ele (Dom Quixote) é um lutador da metáfora, um lutador do imaginário, ele é um poeta visual. As palavras dele são pura imagem, ele é um militante lírico”. A arte abre assim uma lacuna para pensar essas questões, como descreve Deleuze: “O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e também é um ato artístico. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens”.Desse modo, longe de serem esgotados nessas linhas, tais questionamentos se traduzem aqui no esforço de interagir com os desdobramentos das ações do grupo Don Quijote.Não como porto de chegada das ideias, mas sim ponto de partida, um trampolim imaginário que dará sustentação à tentativa de refletir através da arte problemáticas contemporâneas como a recriação e construção do espaço público e dos sistemas simbólicos bem como o condicionamento do conteúdo sociocultural dos indivíduos na mediação das nossas relações com o meio.
Referências
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia da prática. São Paulo: Editora Escuta, 2002.
GUATARRI, Félix (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
http://www.permitidopermitir.blogspot.com/
[1] — Depoimento extraído do blog do grupo “Don Quijote”: http://permitidopermitir.blogspot.com
[2] — Idem.
[3] — Depoimento do Professor de Comunicação da PUC-SP, Sílvio Miele, em entrevista ao Diário de São Paulo em dezembro de 2005 na matéria intitulada “Novo Vandalismo?”
[4] — http://permitidopermitir.blogspot.com