www.revistatatui.com.br
Não buscaríamos origens, mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras. [2]
Gilles Deleuze
A palavra não tem a menor possibilidade de
e x p r e s s a r alguma coisa. Tão logo começamos
a pôr nossos pensamentos em palavras e frases,
tudo sai errado. [3]
Marcel Duchamp
Já de início, temos uma citação de Marcel Duchamp, desconfiando do poder das palavras de
expressarem algo. E faço minhas as suas palavras, pois também
des
E quando se desconfia, se analisa, perscruta, investiga. Quebra, estica, desconstrói, reconstrói. Macera, pulveriza, arrasta e tensiona. Joga, queima, funde, forja.E se você desconfiar em português, na primeira pessoa, pode encontrar o
E tecer. E emaranhar. E desafiar. E riscar.
A citação acima, se tivesse sido dita por outra pessoa, talvez fosse entendida como mero descaso ou desprezo pelas palavras. Talvez por alguém que tenha sido mal-entendido com demasiada freqüência. No entanto, foi dita por Marcel Duchamp, alguém extremamente atento às relações entre palavras e coisas; linguagem e tradução; e suas ligações, sempre problematizadas, com os modos de significar.
Desconfiemos, então, da aparente simplicidade da sua citação, rachando-a.
A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa.
Para os poetas concretos brasileiros [4] , por exemplo, assim como para Mallarmé, ou Joyce (vizinhos de Duchamp?), o interesse na palavra não residia na sua possibilidade de expressar alguma coisa posta por um sujeito. Para eles, a palavra é a própria coisa, em seu aspecto material: “Tudo isto nãoindica outra coisa senão que: a vontade de construir superou a vontade de expressar, ou de se expressar.” [5]
Tão logo começamos a pôr nossos pensamentos em palavras e frases,
As palavras e frases não são um suporte neutro, onde podemos simplesmente pôr nossos pensamentos, um conteúdo que nelas irá residir em segurança enquanto aguarda alguém que venha lhes resgatar. Elas podem fazer com que o conteúdo que depositamos nelas seja flexionado, distorcido, deformado, remodelado. A palavra age e pulsa, e transforma. Por isso, para Duchamp, neste processo,
tudo sai errado.
Mas que idéia é essa de “errado”? O que sai errado? Talvez, errado possa ser lido como distante, referindo-se à distância do que foi posto em relação à sua suposta origem (no pensamento de um sujeito?), onde estaria o que é “certo”, o original.
Errado, em português, pode ter sido algo que errou. Errar também é movimentar-se por aí, vaguear, e distanciar-se de sua origem. Certamente essas palavras de Duchamp não foram pronunciadas em português. O jogo entre errar (errado) e errar (vaguear) é, neste caso, uma possibilidade de leitura que se gera na tradução para o português, obviamente imprevisto pelo autor. Neste caso, a tradução, ou o distanciamento do original, abre novas possibilidades de leitura (erradas?). Se Duchamp depositou algo nessas palavras e frases, por mais que possa ter sido ambíguo, não poderia prever todas as suas saídas, como a que faço agora no português.
Nesse sentido sair errado também nos dá outra dica de abordagem desta citação. O verbo sair está ligado a um movimento de exteriorização. Toda palavra pressupõe um leitor. É dele a responsabilidade sobre a “saída” do que nas palavras foi depositado, a exteriorização de um possível significado. Mas já não tem a menor possibilidade de que a coisa que foi depositada saia certo, ou, próxima da intenção de quem a colocou. Ela sai multiplicada pelo coeficiente artístico. [6]
É como este texto que você acabou de ler, tudo errado.
entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”. Ver DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.
[1] — Este texto pertence originalmente à dissertação de mestrado “Lugares Moles”, de minha autoria, defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação da ECA-USP.
[2] — DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro. editora 34, 1992, p. 108.
[3] — THOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp. Ed. CosacNaify, São Paulo, SP, 2005, p.77 (grifos meus).
[4] — Entre eles, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos. Uma das críticas da poesia.
[5] — CAMPOS, Haroldo e Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. Ed. Livraria Duas Cidades, 1975, p. 125.
[6] — Marcel Duchamp discute a participação do público no processo de significação das obras de arte apresentando o conceito de coeficiente artístico. O coeficiente artístico, seria “uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”. Ver DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.