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“Run, baby, run” (Jim Morrison, Roadhouse Blues)
As imbricações entre pichação e grafiti são várias. Aqui no Brasil parece haver uma diferenciação entre ambas as linguagens que se configura como distinção, o que busco esmiuçar a seguir. Em outros lugares, tudo é ação sobre a cidade, com múltiplos tipos, motivações, técnicas e temas. Não há um verbete específico: é graffiti, graf, grafito… Tais ações são principalmente intervenção urbana – seja ela escrita, desenhada, colada, feita com molde…
Quando o escritor anônimo escreve no muro “pixar é art”, insere neste ato, através de seu texto, uma atribuição estética (no sentido lato de estética –“sentir”) que também é própria da arte. E, se “correr faz parte”, isso ocorre devido a uma consequência inerente à pichação: correr, pois a sua ação não é autorizada pelo dono da parede. O “corre”, para o pichador, é a fuga: da polícia, do cachorro, do dono do muro.Atualmente, os “corres” são outros, como reunir documentos de um edital ou ser “artista-produtor” de sua própria exposição… Os corres são muitos e permanecem, talvez, como atividades inerentes não apenas à pichação, mas à realização da arte: não como fuga, mas para enfim realizar. Trata-se mesmo de correr para tudo: esta é uma atividade intrinsecamente relacionada à existência humana na já tão abordada contemporaneidade.
Aqui farei algumas pontuações sobre o “pixar é art”, suas relações com o grafiti e os “corres” referentes à sua inclusão em algumas instituições museais do Recife. O texto se baseia em pesquisa de campo que realizei entre agosto de 2008 e março de 2009. O espaço é curto, então centrarei as observações em algumas das inserções do grafiti em instituições.
“Pixar é art”
Não apenas nos muros a afirmação é visível, mas também nas atitudes de quem faz pichação. Para muitos pichadores, conforme pesquisa de campo e o que tenho ouvido conversando com quem a faz, a ação de escrever monocromaticamente com tipografia específica (sua ou de seu grupo) contém os elementos fundamentais da arte: é estética (pois as letras têm este objetivo), é ação sobre a cidade – logo é arte.
Para alguns teóricos do campo da arte, no entanto, permanece a diferenciação: pichação vem da escrita e grafiti vem da arte [1] . Ambos são feitos nos muros da cidade. Pichação não é autorizada, muitas vezes tem cunho político. Grafiti geralmente é autorizado e pode também ter conteúdo político. A verdade é que, legalmente, quando não autorizados por escrito pelos proprietários do muro, ou pelos responsáveis pelo patrimônio público, ambos são crime.
Galo de Souza, artista pernambucano em atuação desde a década de 1990, contou-me em entrevista (realizada em 05/12/08) que, já na segunda metade da década de 1980, havia pichações na cidade do Recife. Antes disso, as escritas políticas ou de escárnio permearam não só esta cidade, mas várias outras pelo mundo. Nesta década,a cidade possuía uma demarcação territorial definida a partir das “gangues”. Estas gangues possuíam integrantes variáveis, agregados segundo a lógica da ocupação do espaço – quando eram do mesmo bairro – ou da frequência em bailes funk. As gangues, por sua vez, possuíam siglas que eram assinadas pela cidade, como D.P.S. – “Demônios da Pichação de Setúbal”.
Do período da década de 1980 para cá, a pichação permanece como afirmação territorial e identitária – e/ou como simples “mania” de assinar por onde se passa o próprio nome, mesmo que com “pilot”. Ementrevista com Boony [2] na abertura de sua exposição – integrante da série de mostrasLado B Arrudeia, realizada em 2008 pelo Museu Murillo La Greca – é possível perceber as imbricações entre grafiti e pichação. Quando perguntei sobre sua trajetória, o artista me respondeu:
“Eu não sabia que eu fazia graffiti, mas eu imaginava que era pichação, ou se eu fazia graffiti. Porque são parecidos, é como se fosse primo de primeiro grau a pichação e o graffiti. Andava com pichadores, mas ao mesmo tempo era excluído, porque gostava de desenhar, minha influência era o desenho e a influência do pichador era fazer letra.” (Boony, entrevista à autora, 12/08/08).
Como se vê,não apenas para os teóricos, mas também na fala dos artistas háuma diferenciação entre pichação e grafiti. Esta diferenciaçãotambém confere uma distinção [3] . Na hierarquia de legitimidades que Bourdieu (2003) [4] afirma existir no campo da arte, a pichação não tem os sinais distintivos do grafiti. Assim, a pichação não advém da arte legitimada como tal, não é autorizada e não entrou nos ambientes da mais alta consagração da arte, os museus – portanto não possui a distinção que o grafiti tem.
Até aqui temos, como visto na frase que dá título a este texto, que pichador e grafiteiro se consideram artistas: ambos realizam esteticamente intervenções urbanas.Mas a diferença está em quão legitimadas são suas ações para o campo da arte. E tem sido em busca de outros tipos de legitimação que se vê há algum tempo a inserção de pichadores e grafiteiros no campo da arte institucionalizada. Não mais com os marcadores de identidade “pichadores” e “grafiteiros”, mas como artistas.
“Correr faz parte”
Na segunda metade de 2002, acontecia o 45º. Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, na Fábrica Tacaruna, com curadoria de Paulo Bruscky. O coletivo Subgraf – formado por Moacir Lago, José Rodrigues, Osman Frazão e Guga Cavalcanti– teve espaço no Panorama das Artes Plásticas Pernambucanas, proposto pela curadoria como representante, na década de 1990, do grafiti pernambucano. O Subgraf, por sua vez, chamou pichadores para participar, preenchendo com escritos toda uma parede da exposição. Galo também expôs neste Salão em telas de compensado, onde realizou suas obras.
Excetuando inserções em instituições de menor porte no campo da arte, ou menos legitimadoras na hierarquia que Bourdieu (ver nota 4) indica, o 45º Salão foi, então, a primeira vez que o grafiti ocupou instituições museais no Recife.De lá para cá, entre um corre e outro, exposições institucionais aconteceram, como em 2007 no Mamam – Estética da Periferia, e em 2008 no já citado Lado B Arrudeia. Na primeira, entre os grafitis no térreo da instituição, estava a frase “eu pixo e você?” – como que para lembrar as imbricações entre pichação e grafiti que abordei acima. Tudo junto, escritas e desenhos, sem qualquer identificação, o que foi uma das críticas que ouvi de públicos do Estética da Periferia. A mediação procurava dar conta dessa falta, inserindo em suas provocações reflexões sobre intervenção urbana. Por outro lado, a exposição trouxe ao Mamam um público diferente, oriundo sobretudo das comunidades pesquisadas pela equipe de criação da exposição – que atuou em parceria com a curadoria.Creio que este foi um de seus méritos.
No caso do Lado B Arrudeia, houve a busca por um diálogo entre os artistas, pois as exposições eram sempre em duplas. Das seis exposições, com a articulação da então gestora da instituição, Beth da Matta, participaram: o grupo paulista SHN (que realizou uma oficina na primeira das exposições do Lado B), a Livrinho de Papel Finíssimo Editora e Diogo Todé, Galo e Moa Lago, Elaine e Derlon Almeida, Arbus e Boony, Caju e Evil. Tais artistas e coletivos estão em diferentes situações de exibição institucional. Enquanto alguns já alcançaram certa projeção, outros – conforme a pesquisa acima abordada – sequer haviam entrado num museu antes, o que certamente foi um dos aspectos positivos das exposições do Lado B. Também houve uma maior proximidade dos artistas com o educativo da instituição, que realizou oficinas com a comunidade do entorno – a Vila Vintém.
Dentre outras inserções do grafiti em instituições no campo da arte pernambucano, no período que se segue ao 45º Salão, destaco as que aconteceram no SPA das Artes. Em consonância com sua proposta de fomentar intervenções artísticas nas ruas recifenses, em diferentes ocasiões o SPA proporcionou a realização de trabalhos de e sobre grafiti. Em 2008,o SPA – com a coordenação geral de Márcio Almeida – realizou as Exposições Descentralizadas, cuja proposta foi realizar mostras em seis diferentes regiões do Recife, descentralizando o SPA.
Dentre outros artistas e linguagens, participantes das Descentralizadas, ressalto aqueles que se utilizaram da linguagem do grafiti: Evil, Elaine, Anêmico, Zone e Caju (sob a articulação de Galo, no Nascedouro de Peixinhos); Boony (com a articulação do líder comunitário e ator Edson Fly, no Centro Social Urbano da Ilha de Deus, na Imbiribeira) e Pretto (no Sítio da Trindade, com articulação do músico Neilton).Com as Descentralizadas, houve grande repercussão das exposições nas comunidades que as receberam, o que pôde ser visto na frequência do público – majoritariamente moradores do entorno dos locais das exposições – e que nunca haviam estado em uma exposição.Além disso foi possível,a partir da proposta de expor em um local fechado (ainda que não fosse propriamente um museu), que os grafiteiros experimentassem outros suportes, criando objetos – como eletrodomésticos, quadros e roupas.
Para finalizar, gostaria de tratar de outra recente inserção do grafiti, desta vez no 47ºSalão de Artes Plásticas de Pernambuco. Na primeira exposição de artistas convidados deste salão, realizada no Museu do Estado com curadoria de Adriana Dória Matos, o grafiti parece ter consolidado um lugar protagonista no campo da arte local. Derlon e Gilvan Samico dispunham cada um de uma sala, com projeto de montagem que identificava as obras e as fotografias – caso de Derlon, que além de uma intervenção no local, também expôs registros de alguns de seus grafitis na cidade. O público pôde conferir o diálogo entre dois artistas de diferentes orientações, provocado tanto pela curadoria, como pela própria montagem da mostra.
No entanto, este protagonismo pode ser questionado a partir do edital do salão. Ao contemplar esta linguagem, separou-a das artes visuais, colocando-a na categoria “Prêmio para Projetos de Grafitagem”. É necessário refletir sobre esta especificidade. Se havia um prêmio para “Projetos de Pesquisa e Produção em Artes Visuais” e outro para “Projetos para Residências Artísticas no Estado de Pernambuco”, então o grafiti não é arte visual? Ou a intenção do edital era contemplar especificidades dos “artistas grafiteiros”, que muitas vezes não dispõem de meios (técnicos e financeiros) para realizar as exigências dos editais? (E se a intenção era esta, exigências como projeto com justificativa, objetivo, documentação de autorização do uso dos espaços urbanos, entre outros itens, foram solicitados tanto para os artistas que se utilizam do grafiti como para os “artistas visuais”).
Além destes questionamentos, que requerem maior debate entre os gestores do 47ºSalão e os artistas, ressalto o aspecto positivo desta inserção: fazer circular entre curadores e pesquisadores convidados para a seleção os projetos realizados pelos grafiteiros, abrindo caminho para que seus trabalhos sejam mais conhecidos. Outro aspecto refere-se à profissionalização desta linguagem, por meio do apoio institucional às intervenções urbanas. Mas o fato é que com o 47º Salão (ainda que com estes percalços do edital – o que não impediu o envio de vários projetos) o grafiti parece ter conseguido se consolidar no campo institucionalizado da arte pernambucana.
Paralelamente a este percurso de inserções institucionais, muitos artistas que se utilizam da linguagem do grafiti têm se articulado em coletivos, trazendo desta maneira uma permanente circulação, nas ruas, deste tipo de produção. Um desses coletivos, ligado não só ao grafiti, mas também à música e à dança – sobretudo advindas do universo hip-hop [5] – é a Rede da Resistência Solidária. Segundo Galo, “a Rede da Resistência Solidária é uma rede afetiva e solidária, um espaço para o diálogo provocativo e surgimento de práticas positivas nas comunidades. […] Propomos novas relações de trabalho, mais solidárias; novas relações sociais, mais igualitárias; e novas relações entre os indivíduos, mais humanas.”
A Rede, dentre outras ações, promove mensalmente o Mutirão de Grafiti. Este mutirão, que reúne grafiteiros oriundos de diversas comunidades do Recife e adjacências, já aconteceu, desde sua criação, em meados de 2006, em mais de sessenta localidades. Note-se que, independentemente de sua exibição institucional, o grafiti tem circulado nas ruas e tem sido visto por públicos aos quais o acesso às instituições museais de diversos tipos ainda não acontece. Certamente, esta circulação em ambientes não institucionalizados da arte, como é o caso do Mutirão, proporciona uma visibilidade permanente ao público – diferente de outras linguagens artísticas, o que agrega significados que podem ser apropriados pelas instituições que fomentam as novas linguagens voltadas à intervenção urbana.
Como se vê, a escolha das instituições museais por uma identidade mais relacionada à sociedade e suas diferenças parece se configurar nas ações recentes onde elas incluem o grafiti. Enquanto a escrita urbana confere ao grafiteiro o contato imediato com o público, o museu faz com que este contato seja mediado por uma instituição – constituída enquanto instância legitimadora no campo da arte. Portanto, se por um lado, o grafiteiro almeja um lugar nestas instâncias para legitimar sua produção como arte visual, por outro, também as instituições procuram incluir o grafiti como forma de agregar públicos às suas ações. É necessário “correr”, portanto, com o objetivo de tornar o campo da arte menos mercantilizado, porém cada vez mais contextualizado, fazendo com que os agentes que operam neste campo o conheçam e o problematizem, ampliando os significados que o grafiti já tem no contexto urbano e agregando outras significações, com sua inserção em contextos museais.
[1] — Ver por exemplo, AGUIAR DE SOUZA, David da Costa. Graffiti, Pichação e Outras Modalidades de Intervenção Urbana: caminhos e destinos da arte de rua brasileira. Rio de Janeiro: Revista Enfoques, vol. 7, no. 1, março, 2008. Disponível em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/marco08/05.htm, acesso em 20/08/08. e GITAHY, Celso. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999.
[2] — Note-se aí outra imbricação entre graffiti e pichação: os codinomes que são utilizados como forma de identificação perante um grupo – o que tanto é o caso dos grafiteiros como dos pichadores.
[3] — Cf. BOURDIEU, Pierre A Distinção: Crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp & Porto Alegre: Zouk, 2008.
[4] — BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2003. Para o autor, há no campo da arte uma hierarquia de legitimidades na qual coabitam instituições com maior ou menor poder de legitimar a produção artística, tais como museus, galerias e crítica de arte.
[5] — Surgido em meados da década de 1960 como afirmação política de populações marginalizadas – notadamente os negros – frente aos poderes públicos nos Estados Unidos, o hip-hop conjuga quatro elementos: o graffiti, o DJ (disc-jockey), o MC (master of cerimony) e a break dance.