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“Ego dominante” Em texto institucional [1] sobre um dos braços da Bienal, o Musicircus – propostade John Cage (1967) experimentada por um amplo grupo de artistas e público em outubro de 2009, no contexto do evento –, comenta-se que a principal preocupação na realização do trabalho estava na demonstração de um processo coletivo e democrático de produção e experiência da música, que não poderia ser “regido por um ego dominante”.
Talvez algo muito similar possa ser dito em relação à Bienal como um todo: ausência de ego dominante.
Incorporando múltiplos egos-curadores (quase todos artistas), cuja autonomia curatorial parece ter sido mantida por meio de exposições/atividades independentes, de preocupações e formatos efetivamente distintos, aquilo que poderia serum outro – e mais forte – “ego dominante” da Bienal, uma temática, não existiu: “em seu conjunto, a 7ª Bienal propõe uma guinada metodológica: um sistema centrado nos processos de criação – mais que em temas específicos”.
Ainda que habitualmente, nas bienais “tradicionais”, os temas propostos poucas vezes sejam de fato rigorosamentetrilhados – servindo mormente como pretexto para validar as concepções de seus respectivos “egos dominantes” acerca da arte de seu espaço-tempo –, construir uma Bienal sem tais argumentos temáticos“externos” pareceassumir um desvio no foco do olhar que pensa/produz arte, agora.
Ao invés da frágil tendência em direção a umaarte que comenta o mundo por ter entendido não poder representá-lo (donde talvez surjam, com veemência, os temas das Bienais que têm estreita ligação com questões da filosofia contemporânea), a 7ª Bienal do Mercosul, resguardando uma relativa autonomia à produção artística, centra-se em seus “processos de criação” como “método” para relacionar a arte ao mundo. Trazendo questões de linguagem ao cerne do debate da Bienal – desenho, instabilidade, transformação, etc. –, larga mão do ainda persistente apego aos sistemas de significação (como chave de produção e leitura da arte) a fim de abrir espaço a investigações e experimentações de linguagem que fogem aos sentidos e nexos pré-estabelecidos. Como diria Hélio Oiticica: “todas essas são coisas velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas significantes (…), na realidade, o que resta agora é apenas a proposição da grande invenção” [2] .E a invenção, em suas múltiplas formas de existência, pode ser considerada “absurda” – é por definiçãoextra-ordinária.
Como informa texto curatorial da mostra Absurdo, curada pela artista Laura Lima e talvez uma das mais polêmicas desta 7ª Bienal, a “exposição opera sobre a estranheza e a ideia de instabilidade. (…) criando um novo lugar ou um outro lugar para o que está por vir ou o que nem foi ainda codificado”. A arte está na mostra apresentadacomo possibilidade de ir além da linguagem que nos faz cotidianamente comunicar: sendo outra linguagem, a arte não precisa falar, dizer, argumentar. Ela pode ser Grito e, ao berrar, comunica a seu modo. Há, contudo, a “responsabilidade social”.
“Benefícios” dominantes. Em texto de apresentação de sua 7ª edição, a Fundação Bienal do Mercosul elenca suas metas. Antes do ponto que menciona o objetivo de manter uma “contínua aproximação com a criação artística contemporânea e seu discurso crítico”, em primeiro lugar está aquele que diz do “foco na contribuição social, buscando reais benefícios para os seus públicos, parceiros e apoiadores”. A “relativa autonomia” resguardada à produção artística, na ausência de um tema-ego da Bienal, converte-se numa demanda de diálogo social que precisa ser levada em consideração nos “absurdos” de suas experimentações de linguagem. O Gritonão pode ser agudo a ponto de inviabilizar a Escuta: “para a Fundação Bienal do Mercosul, esta Bienal vai promover ações pensadas para envolver o público em um processo contínuo de aproximação e diálogo”.
Ainda que a “responsabilidade social” demandada pela Fundação possa ser um ego dominante da 7ª Bienal, ela não parece inteiramente ir de encontro à arte contemporânea, que há algum tempo vem incorporando, em seus interesses e “métodos”, referências e desejos herdados do campo da responsabilidade. Como afirma texto do projeto pedagógico da Bienal, muitos são os artistas que têm buscado “restabelecer vínculos sociais, expandindo sua área de trabalho, repensando a própria prática e respondendo às necessidades tanto da comunidade artística quanto da sociedade em geral”.
Resposta e responsabilidade. O artista Vitor César cita “a autora americana Rosalind Deutsche, em um texto que aborda questões entre arte e esfera pública” [3] , para se referir à ideia de responsabilidade como habilidade de resposta – do inglês, response + ability. Para Rosalind, trata-se de um modo de se posicionar diante do mundo. Para Vitor, a responsabilidade da arte não é assumir compromissos sociais, mas se posicionar criticamente face à sociedade.
Para Yuri Firmeza, outro artista, a ideia de uma “habilidade de respostas parece uma questão de eficiência produtiva, do marketing, da administração, sobretudo por conta do imediatismo explícito na response +ability.” Yuri, distinguindo-se da fala de Vitor César, afirma: “eu sempre desejei que meus trabalhos traíssem o público ao qual ele pode, um dia, ter sido destinado. Sempre almejei apagar qualquer relação de emissor para receptor que essa questão do público definido a priori me parece conduzir. Pois bem sei que arte nada tem a ver com comunicação.” [4]
Vitor e Yuri não estão participando da 7ª Bienal do Mercosul.Mas se referem a um embate que, acredito, a perpassa e ultrapassa. Entre o Absurdo e o Texto Público, como articular a necessidade de gritar com o desejo de ser compreendido? Como levar adiante um elevado grau de experimentação em arte sem condicionar-se socialmente? Se “todo esforço criador tem um lado marginal” [5] em seu aspecto de não codificação, como manter acesa a marginalidade do que está instituído pela Fundação Bienal do Mercosul? Em que medida curadores-artistas fazem alguma diferença nesse processo?
Coincidência?Rigorosamente, nada garante que, por ser curada por artistas, a 7ª Bienal do Mercosul possua uma ética diferenciada daquela comum às bienais ego-dominadas por curadores. Contudo, quando a Oi foi convidada a patrocinar esta edição do evento e se sentiu incomodada com o título da obra Ao Vivo, de Cristiano Lenhardt, quem “se retirou” não foi o artista, mas ela. A Fundação Bienal do Mercosul, que elencara primeiramente o desejo de “reais benefícios para os seus (…) parceiros e apoiadores”, pôs o compromisso com a arte na frente. Não foi Cildo Meireles quem abdicou da participação na Bienal.
“A anarquia é a verdadeira ordem entre os homens, o resto é mero comércio” [6] . No final das contas, desconfio que o ego dominante desta 7ª Bienal, esseque continua demandando coerência e regularidade, tende a se apresentar em nós – o público de curadores, artistas e críticos,talvez cada vez menos acostumados com o “lado marginal” da invenção. É que, a despeito das 10 alterações propostas/impostas às obras da mostra Árvore Magnética, a intenção demonstrada pela curadoria da mesma – a de fazer a “crítica especializada, a imprensa e o público” repensarem seus papéis como “atores determinantes no campo contemporâneo da arte” –, acredito, foi de algum modo alcançado pela 7ª Bienal do Mercosul.
Todavia, no meu caso, não foi através do que ela afirmou/dialogou/propôs que esse “repensar” se deu. Foram suas lacunas, silêncios, destrambelhos; a sensação permanente de que há algo errado, incompleto, canhestro: em última instância, a ausência de capacidade de comunicação.Tudo o que pedia do público uma posição tão experimental quanto aquela que se esperava da arte.
[1] — Todos os trechos de textos institucionais da 7ª Bienal do Mercosul presentes neste texto foram retirados do website do evento: http://www.fundacaobienal.art.br/novo/index.php?option=com_content&task=view&id=1394&Itemid=1485&id_bienal=36&menu_image=-1&unique_itemid=0
[2] — Hélio Oiticica em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, para o filme HO. FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
[3] — Depoimento de Vitor César em conversa para o catálogo do Projeto Condomínio. Recife: Branco do Olho, 2010.
[4] — Depoimento de Yuri Firmeza em conversa para o catálogo do Projeto Condomínio. Recife: Branco do Olho, 2010.
[5] — Hélio Oiticica em entrevista para o Pasquim. FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
[6] — Jean Natal Groishman, citado por José Oiticica em texto do periódico Ação Direta.