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Falar do corpo contemporâneo é falar de um organismo ou de um sistema de informações. Uma rede de negociações que são traçadas virtualmente no nosso cotidiano. Os corpos rapidamente se conectam e desconectam dos territórios.Através das novas tecnologias — como as câmeras dos celulares, GPS e i-pods — interagimos com o ambiente compondo-o no cenário tecnocidade ideal.
Construímos esse tipo de cidade, com suas tecnologias específicas em que as propagandas ganham corpo e flutuam sobre nossas cabeças, isso quando não se impregnam ou se inserem nos nossos próprios corpos. Somos interpelados por elas a todo o momento. As publicidades estão cada vez mais sedutoras, criativas e convincentes… E, por que não, artísticas?
O que notamos mesmo é que a arte e a propaganda conseguem se unir e criar campanhas publicitárias fantásticas, nas quais a imagem do produto e a sua trajetória no mercado importam mais do que o produto em si. Mas o que se torna “fantástico”, no sentido literário da palavra, é que muitas destas estratégias são conhecidas e se autodenominam, no mercado publicitário, como “marketing de guerrilha”.
Guerrilha.s.f. Bando armado de voluntários, que combatem o inimigo fora do campo ou por emboscadas; tropa indisciplinada; quadrilha de ladrões; facção política que não chega a constituir partido disciplinado.
Dicionário Brasileiro Globo, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft e F. Marques Guimarães
Esse tipo de estratégia de marketing, que está se desenvolvendo cada vez mais na nossa sociedade tecnocientífica, valoriza muito a “interatividade” e a estética da hiper-realidade, que faz uma ponte entre o mundo encantado da propaganda e a vida cotidiana cinza e banal. E, na maioria das vezes, essas ações são realizadas no espaço público das ruas, em forma de intervenção urbana.
Uma das campanhas mais conhecidas de “guerrilha” é a que convoca um grupo de pessoas e as contrata, em nome de uma empresa, para tatuarem em seus corpos os símbolos de uma marca comercial. De uma maneira engraçada, ou por mera coincidência, ou quem sabe em resposta a esse tipo de ação publicitária, um artista do Rio de Janeiro, Ducha, fez um trabalho no ano de 2002 chamado Tatuagem sobre homem mal remunerado. A obra foi realizada graças a um edital do Itaú Cultural: o artista contratou um homem, que tatuou na própria cabeça a logomarca do Itaú, levando essa ação à galeria de arte do próprio banco, plasmada no corpo do sujeito como seu trabalho de arte.
Atualmente, existem diversas agências publicitárias que se dedicam somente a esse segmento de propaganda e que se diferenciam por criarem tais mídias mirabolantes. Organizam campanhas de marketing com direito a passeatas, amostras grátis de produtos e muita, mais muita “interatividade”. Nesses casos fica difícil identificar o que é entretenimento e o que é propaganda e, nessa mistura “genial”, o produto em si torna-se mero fim. Mas esse fim não parece mais interessante em nossa sociedade do “quero sempre mais”. O desejo hoje é direcionado para os interstícios do novo, ele se projeta no futuro em devir constante de mais desejo, numa espiral do prazer, na qual este nunca é alcançável, logo, não parece finito.
Deixando de lado as possíveis análises sociocomportamentais dos indivíduos envolvidos neste tipo de ações, estamos interessados em discutir aqui a relação entre arte, propaganda e corpo: a arte no âmbito das suas expressões mais críticas ou que possuem uma verve de negação; a propaganda atuante nos corpos contemporâneos e no cotidiano das pessoas em forma de entretenimento.
É interessante notar como a arte, que muitas vezes quer debochar da vida medíocre que levamos, age aqui conjuntamente à propaganda, muitas vezes não conseguindo escapar das armadilhas dessa junção. Obviamente, se pensarmos que uma mesma ação tem seu sentido completamente diferente dependendo dos espaços em que ela for realizada, seja na galeria ou nas ruas, e dentro de um sistema de compartilhamento de signos diferentes, enxergaremos a diferença entre a arte e a propaganda, como também os efeitos midiáticos que cada uma delas repercutirá.
Contudo, a questão aqui colocada é a seguinte: a arte, se deparando com as novas estratégias da propaganda, traz uma ação crítica ou simplesmente faz um retrato estetizado dessa realidade e, portanto, torna-se uma propaganda de si mesma?
Publicidade. s.f. Qualidade do que é público; vulgarização; divulgação; propaganda por anúncios, cartazes; reclamo.
Dicionário Brasileiro Globo, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft e F. Marques Guimarães
Seria uma perda de tempo discutir se os artistas estão interessados em fazer publicidade de seus próprios trabalhos.Por serem sujeitos públicos, já estão inseridos no sistema midiático da nossa sociedade, e necessitam dele para articular o que eles fazem em algum mercado ou circuito artístico. A discussão deve se concentrar em outro plano: no tipo de trabalho e de sistemas de arte em que o artista se articula e circula.
Esse debate se aplica também às propagandas e é uma discussão ética, não moral, acerca da arte e das suas aplicações sociais. Se a arte fosse uma mera expressão subjetiva, que não contivesse em si qualquer status ou valor, não teria se construído em torno dela um mercado tão lucrativo e repleto de investimentos.
Essa discussão se torna ética, uma vez que invade o espaço público da cidade, tatuando seus tecidos, comprimindo os corpos dos sujeitos e deixando-os quase sem brecha para respirar. E, por último, o que insere essa questão num debate de tipo ético é que a propaganda não só reprime, impõe ou obriga, mas muitas vezes é prazerosa e extremamente aceita pelo público no que se refere a mobilizar desejos e moralidades.
[Outro dia, eu estava andando pela Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, e no meio de diversos trabalhadores que me ofereciam papeizinhos de “compramos ouro” e “ganhe dinheiro fácil”, vi outro sujeito que tinha nas mãos uma bandeja com uma espécie de copinho. Parecia gostoso e saía fumaça. Cheguei perto e perguntei se era de graça, ele me deu um dos copinhos e disse que era icecoffe. Nesse momento, eu agradeci pela campanha de marketing. Ah, claro! Era apenas uma propaganda de uma cafeteria com internet que tinha aberto no Center à frente. A ideia era fazer uma degustação ao ar livre e distribuir uma filipeta junto ao “souvenir”, que valia 10% de desconto em algum produto da loja.]
A resposta da arte vem em forma de performances no espaço público, happenings, arte pública, intervenções e interferências urbanas. Na maioria das vezes são respostas estéticas relacionais, que convidam e apelam às sensorialidades múltiplas dos passantes. Diversos trabalhos artísticos se utilizam desse lugar público a fim de propiciar uma maior circulação da arte e construí-la realmente pública, no sentido de arte como produção cultural disponível para qualquer sujeito.
É difícil escapar da tramoia do mercado [é possível?], sobretudo agora que a criatividade está por aí, em forma de arte-produto disponível a todos, talvez desempenhando um papel que a arte pública queria ter consumado, atingindo mais pessoas e de forma mais “eficaz”. Porém, a grande questão seria a seguinte:
A arte pretendia não só alcançar esse público, como fazê-lo pensar e sentir no corpo aquilo a que ele é exposto todos os dias. Criticar, não apenas comunicar em meio a tanta comunicação. Remover sentidos dos lugares demasiadamente saturados de sentidos, deixar relaxar, distensionar e fascinar sem fins lucrativos.
[Produto à venda! Arte à venda! Des-frute! De-guste!Não pague nada e não leve para casa!]