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A cidade como objeto artístico e não apenas enquanto mero suporte para intervenções é questão recorrente na obra do artista pernambucano Paulo Bruscky. Artista multimídia, foi precursor das artes Xerox e Postal no Brasil. Com atuação marcante na arte conceitual brasileira, desenvolveu uma vasta e múltipla produção artística, contribuindo significativamente para a definição dos rumos que a arte contemporânea brasileira iria tomar a partir da década de 1960, período em que inicia sua trajetória artística.
As intervenções urbanas elaboradas por Paulo Bruscky têm o cotidiano urbano e as ruas como matéria-prima. Não somente em seu aspecto “físico”, mas também “imaterial”, entendendo que o conceito “rua” também é formado por situações históricas, políticas, sociais e estéticas, elementos a partir dos quais o artista realiza investigações e (re)elaborações.
Buscando compreender as relações entre as errâncias, o jogo e a subversão que o artista pernambucano constitui em suas intervenções urbanas, realizamos uma análise acerca dos trabalhos produzidos na década de 1970 pelo artista, desenvolvidos na capital pernambucana e que apresentam a transgressão, a transitoriedade e o lúdico como conceitos fundamentais. Diante dessas perspectivas, este texto tem como objetivo analisar e descrever as principais estruturas estéticas e conceituais das intervenções urbanas de Paulo Bruscky, refletindo sobre como o espaço público, com suas funções habituais e citadinas, se articula com as questões estéticas provocadas por estes trabalhos.
As errâncias, o jogo e a subversão, em maior ou menor dimensão, vão se articulando nos processos de construção das proposições de Bruscky, sendo apresentados em soluções inéditas e provocativas, tendo como foco a rua –em suas funções e dimensões possíveis: simbólicas, estéticas, utilitárias, etc. Por se tratarem de ações na cidade, as propostas do artista têm ainda como foco a coletividade, representada pelo espaço público da cidade e pelos sujeitos que ali interagem cotidianamente. Suas proposições, dessa forma, são abertas à experimentação coletiva tanto dos artistas que participam, quanto de quem passa, frequenta mora e/ou usa a cidade no momento da intervenção.
Percebemos, ainda, na base de suas propostas de intervenção urbana a prática da errância, que está presente, ao longo da história das cidades, nas deambulações dos surrealistas e dadaístas, nas derivas dos situacionistas e, mais diretamente, nas propostas artísticas do grupo Fluxus.
Dos situacionistas e surrealistas podemos observar, nas intervenções de Bruscky, errâncias urbanas por lugares banais, como também a criação de situações e ambientes que possibilitam uma fuga e uma (re)significação crítica da apatia cotidiana, dos lugares-comuns e das determinações do uso do espaço urbano.Do Fluxus, temos a concepção da cidade como um campo aberto às investigações artísticas: local onde a arte e a vida se unem numa experiência integral e sinestésica.
As perambulações propostas nas intervenções de Bruscky apropriam o espaço urbano – subvertendo o local ou uma situação cotidiana –,inferindo-lhe outros sentidos, muitas vezes impregnados de uma forte crítica ao sistema vigente da arte e à difícil situação política vivida na década de 70.
Em trabalhos como Recife em Recife, no qual o centro da cidade do Recife é apropriado por Paulo Bruscky e transformado numa imensa galeria, os transeuntes são convidados a visitar uma “exposição” em que vários pontos da cidade são indicados como “obras de arte” a serem contempladas: “a Avenida Guararapes à noite”; “o Rio Capibaribe visto do quinto andar do Edifício Tereza Cristina”; “a madrugada na Avenida Conde da Boa Vista”.
Destaca-se nestas propostas a intensa relação do artista com determinados pontos da cidade: lugares que ele vivencia desde sua infância e com os quais possui forte relação poética e emotiva. Para Bruscky, o rio Capibaribe, as pontes, as praças, os lugares tradicionais e marginalizados do centro do Recife, são matéria-prima de sua arte. Percursos banais e lugares praticamente invisíveis pela rotina urbana diária são (re)significados em proposições lúdicas, interativas e subversivas, constituídas a partir do olhar estético e crítico de Bruscky sobre sua cidade natal.
O elemento jogo, presente em articulação com as errâncias nas intervenções do artista, ganha uma dimensão ampliada, não estando necessariamente vinculado à competição ou submetido a um sistema de regras. Nesse sentido, em suas proposições, o jogo muitas vezes caracteriza-se pela ausência da carga competitiva, onde a tensão decorrente entre o ganhar ou o perder é anulada. Dessa forma, o lúdico do jogar se aproxima, assim como nas errâncias, da definição situacionista de jogo, segundo a qual: “[…] o elemento de competição deve desaparecer em favor de um conceito mais realmente coletivo de jogo: a criação comum de ambiências lúdicas escolhidas.” (Internacional Situacionista IS nº 1, junho de 1958).
Em Artemcágado (1972), proposta desenvolvida por Paulo Bruscky em parceria com Daniel Santiago, na Praça do Diário, no centro do Recife, a população é convidada a participar de uma exposição/concurso de cágado, através da distribuição de convites e de um anúncio no jornal. O convite indicava o que era necessário à participação: trazer um cágado ornamentado para ser selecionado por uma comissão de artistas. O concurso/exposição inusitada ganha um sentido irônico de jogo, discutindo a temporalidade da cidade contemporânea e propondo uma intervenção no ritmo acelerado para que ela seja vista de outra forma, esteticamente.
No projeto Mala, de 1974/2001, jogo, errância e subversão se articulam como nas demais intervenções analisadas. Os transeuntes são convidados a explorar a cidade a partir da provocação de um objeto banal: uma mala. Nesta proposta, a mala é abandonada ao acaso no “espaço expositivo” (cidade) e o visitante é convidado a transportá-la aleatoriamente. Entram nesse “jogo”, como regras e provocações, a curiosidade provocada pelo objeto, o acaso, o inesperado e a ação do transeunte, que também é apropriado ao processo poético da intervenção.
As intervenções nas pontes utilizam um marco referencial da cidade do Recife: o rio Capibaribe, cuja apropriação, no momento da intervenção, subverte e cria novos sentidos como ocorre em Arteaerobis (1973). A presença do jogo e do lúdico revela mais uma vez o caráter irônico, coletivo e transgressor das intervenções do artista, que propõe uma troca de aviõezinhos de papel entre transeuntes, artistas desconhecidos e amigos, durante a Semana da Aviação. Cria-se um ambiente insólito e provocativo, alterando os circuitos habituais e instigando a curiosidade de quem passa e vê aquela situação incomum.
Todas as proposições citadas e analisadas são transitórias e únicas enquanto experiência partilhada pelo artista, por quem passa nas ruas e por aqueles que participam das propostas. No entanto, Paulo Bruscky cria formas de registro dessas proposições, utilizando e organizando fotografias, filmagens, montagens e arquivos.
Sem a pretensão de chegarmos a uma análise mais aprofundada, apontamos aspectos fundamentais a serem observados nas intervenções urbanas de Bruscky. As abordagens apresentadas neste texto enfatizam, de forma sintética, a multiplicidade de questões que permeiam a concepção artística do artista pernambucano e sua relação com a cidade do Recife. Enfatizamos, sobretudo, a importância da cidade na sua obra, assim como o processo poético que incorpora as dimensões lúdicas, simbólicas e funcionais da geografia urbana. O resultado torna-se fruto da inter-relação do urbano com o jogo, a subversão e as errâncias, elementos que processam e determinam valores, significados e expressões do universo artístico, social e cultural da cidade do Recife.