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Um cruzamento movimentado no Centro da cidade de Fortaleza. No pequeno intervalo entre o fechamento de um dos sinais de trânsito e a abertura do outro, os artistas disputam uma partida do jogo que dá nome à obra. Aproveitando o próprio diagrama matemático que a cidade oferece ao cidadão, a dupla Barbosa e Ricalde constrói um organograma que se mantém reatualizado a cada ação do jogo: é um trabalho “entre-tempos”. Tudo gira em torno do tempo, desse momento de parada no tráfego. Operam, portanto, no vermelho, no débito, na falta… de tempo. Arriscando suas vidas e a dos motoristas, essa tática irônica não significa divertimento, mas recusa ao cotidiano usufruto e justificável daquele espaço, reconhecendo-o como terreno de vivência móvel, volátil, na cidade. A marcação à tinta das cruzes e círculos feita pela dupla no asfalto faz um mapeamento negativo do espaço, indica tudo aquilo que ele não é, que não se pode ver. A situação aqui não interessa tanto como uma simples demarcação, mas como deslocamento, um transitar entre as coisas, mas no sentido em que Guimarães Rosa afirmava: “Os lugares não desaparecem, tornam-se encantados”. Tudo o que temos é uma zona sem traçado nem fronteiras. Não se trata de simplesmente jogar (ou criar um percurso de um lugar a outro), mas de produzir um movimento que afete simultaneamente todo o espaço.
O estranhamento pode ser confundido com contradições como em Des-limite (2006) de Waléria Américo. Movimentando-se entre os andares de uma torre, por meio de uma escada, e tendo as janelas como espaço de circulação entre o dentro e o fora, observamos os seus procedimentos bem demarcados mas não os aproximamos de um término ou finalidade. Risco e segurança estão agora aproximados, apesar do primeiro significar um rumo a um lugar que não se conhece ainda. Em outro trabalho de 2005 – Para ver o céu mudar de cor–, é apresentada uma série de cinco fotografias, que exibe a imagem da artista caminhando sobre a mureta do topo de um edifício, vizinho a outros arranha-céus que na sua malha de concreto quase encobrem a vista do horizonte. Como afirma Moacir dos Anjos, “o perigo de queda implícito na caminhada parece estar justificado na última das imagens mostradas, em que a artista alcança posição que a permite testemunhar o crepúsculo para além da barreira que os edifícios formam, bem como no título-motivo dado ao trabalho” [1] . Risco que se afirma na inquietude de uma cidade que está se desrealizando: ela é um horizonte, não pertence mais ao cidadão, e nem este a ela. Demasiado extensa e complexa, escapou da medida humana, tornou-se um patchwork, na expressão de Félix Guattari, no qual vão se justapondo desordenadamente fragmentos disparatados. Descentrada e excessiva, nem comporta mais planejamento integrado. O habitante se transforma no espectador-consumidor que sucumbe às imagens da estetização generalizada e vive na ansiedade de uma demanda insaciável.
Nesse risco contemporâneo de se enxergar uma proximidade cada vez maior entre arte e vida (como se esse diálogo não fosse um vivo contato estabelecido desde que alguém nomeou tal experiência como obra de arte), Ronald Duarte executa em 2002, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, a intervenção Fogo cruzado. No entroncamento de 3 vias dos trilhos do bonde, um tridente é formado. A cidade está dividida. O artista espalha estopa e derrama querosene. Duarte utiliza aproximadamente uma extensão de 500 metros de cada via. Organiza 13 duplas de amigos que são incumbidos de espalhar a estopa e em seguida jogar o querosene sobre os trilhos. Talvez o risco não esteja no fogo – já que o mesmo não atinge uma altura que possa provocar maiores perigos – mas na possibilidade de ser preso [2] .
Se deslocarmos para um diálogo entre o discurso (político) e a intervenção aliado a esse processo de risco, chegamos a Shibboleth, a intervenção apresentada por DorisSalcedo no Turbine Hall da Tate Modern em 2007. O trabalho dessa artista, quase sempre permeado por um discurso autobiográfico e político, tende a correr menos riscos quando essa associação é produzida. É o momento em que intencionalidade e discurso do artista se misturam na construção de uma possível inteligibilidade ou história dessa obra. Para Salcedo, a obra se endereçou a um longo legado de racismo e colonialismo que assola o mundo moderno. O termo que dá título ao trabalho é uma frase ou uso de linguagem que funciona como uma chave de pertencimento a um grupo social particular. Ela é usada para excluir aqueles indesejáveis a esse grupo. O discurso de Salcedo continua revelando que ela teve a intenção de expor a fratura que a própria modernidade atravessa. Portanto, não estamos mais falando do risco que delineia, atravessa e rasga o espaço físico da Tate nem do risco real de uma pessoa cair no buraco, mas no risco de o discurso da artista corromper a possibilidade da obra se tornar mais potente do que ela imagina que o trabalho seja.
A cidade também é investigação de espaços em Falante (2007), performance executada por Romano. Munido de uma mochila que emite sons e de uma câmera de vídeo, o artista perambula pelas calçadas da cidade, espalhando (des)informação, solicitando comunicação e muitas vezes “ouvindo o vazio” como retorno. Romano não espera por nada; ele na realidade não quer efetivamente conversar. Ele não é um João do Rio contemporâneo. Não está interessado em pesquisar os sons, odores, paisagens e espaço nem mapear as maravilhas da cidade. Com antecedentes em 4 Dias e 4 Noites (1970) de Barrio, Romano avalia, questiona e expõe o lado mais degradante e individualista da cidade. Durante sua performance, o artista poucas vezes é incomodado ou questionado pelo público, seu passeio com uma pesada mochila/equipamento de som grudada em seu corpo, emitindo aos berros a frase “Não preste atenção”, nem desperta tanta atenção e é visto como algo normal. O risco cai no vazio. A incomunicabilidade e o estranho tornam-se frequentes e cômodos na cidade. Nada desestabilizadores, são situações normais, onde as pessoas não se deixam mais afetar pelo outro.
Afirmam que a interferência (ou intervenção) urbana é um trabalho que dialoga com a subversão. Falsa analogia. Todo trabalho de arte é subversivo em menor ou maior grau. E a suposta subversão que a interferência urbana carrega é quase sempre acompanhada de uma autorização do órgão competente do Estado (como foi o caso de todas as ações descritas nesse ensaio). Devemos ter cuidado ao analisar um suposto drible do artista ao Estado na produção dessa “interferência”. Não podemos confundir uma prática artística altamente emanadora de potência com um discurso tendencioso ao simples ato de “cometer um crime” em nome da arte. Nos trabalhos aqui comentados não há um discurso de euforia ao drible mas um fecundo diálogo entre espaço, arquitetura e vivências.
[1] — DOS ANJOS, Moacir. Rumo a um lugar que não se conhece ainda. In: AMÉRICO, Waléria. Contínuo transitório. Fortaleza: Centro Cultural Banco do Nordeste, 2008. (catálogo de exposição).
[2] — “No momento, em que o fogo é aceso, a polícia procura pelo ‘culpado’ e começa a perguntar ao público: ‘Quem é Ronald Duarte?’. Eu havia espalhado entre o público que caso alguém perguntasse quem era Ronald Duarte, que dissessem que era uma pessoa vestida com uma camisa estampada com os dizeres: ‘Fogo cruzado’. Havia 26 pessoas vestidas assim. Então, Ronald Duarte poderia ser qualquer um deles” (In Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro, 03 de maio de 2006).