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Tatuí Que espaços, que agenciamentos, você acha representantes hoje, no Brasil, daquilo que a Bienal outrora representou em termos de construção de um projeto de modernidade? Onde podemos diagnosticar um projeto similar, e que não está totalmente vinculado (ou consegue escapar da melhor forma possível) à lógica das feiras, do mercado?
Francisco Alambert Isso é muito interessante porque isso é mundial, não é só do Brasil nem da Bienal. É um fenômeno que acontece no mundo inteiro: a volta das feiras de arte, que só pode ser entendida dentro da forma dominante no capitalismo hoje – que acabou de entrar em crise; não se sabe se continuará dominante, mas foi a que prevaleceu até agora –, a da especulação financeira, ou seja, a valorização da irrealidade em cima da ideia de posse, do irreal, do virtual, etc. A arte, mais ou menos como no século XIX, voltou a ser uma commodity de mercado,cujo funcionamento se presta ao sistema de valorização e trânsito como mercadoria.As formas da arte contemporânea são espetaculares para isso, porque se adaptam, formalmente e integralmente, a esse sistema – através da “desmaterialização”, dos projetos– sem precisar da materialidade do “negócio” como era a obra moderna.Ela (a arte) vira quase que uma commodity perfeita, quase um espelho complexo da própria realidade. Não é coincidência que o mercado de arte – por exemplo, dos EUA – tenha estourado do jeito que estourou nos anos 1980, coincidindo com a ascensão dessas figuras tipo yuppies, milionários instantâneos, gente que ganhava milhões na bolsa de valores da noite para o dia e investia em arte. Mas o que é curioso é que, naquele momento (anos 1980), eles investiam em arte justamente no que ela tinha de mais “real”, mais concreto: investiam no objetoarte. Compraram, compraram, compraram e transformaram o mercado numa loucura. Jogaram os preços no fim do mundo! Nos anos 1980, bancos japoneses (que depois faliram todos) compravam telas do Van Gogh, por exemplo, por 80 milhões de dólares! Paradoxalmente, a arte representava dinheiro materializado – “dinheiro real”, como dizia Marx. Esses preços se tornaram incompatíveis com o próprio mercado, tornado totalmente irreal, absurdo – embora não se tenha, claro, parâmetros econômicos objetivos para a arte. Mas jogaram os preços do primeiro modernismo na estratosfera. No final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, passou a ser a grande vedete do mercado comprar arte contemporânea, porque era essa que estava com o preço lá embaixo e tinha esse aspecto da maleabilidade… Criou-se o mercado da arte contemporânea que, não à toa, coincide com a expansão geral das exposições mundiais, das megamostras…
(…) O caso da obra do Hélio Oiticica foi isso. É uma vedete desse novo mercado, só que aí tem um paradoxo engraçado: o novo mercado (internacional) supercontemporâneo descobriu nos artistas brasileiros dos anos 1960 uma espécie de revitalização de si mesmo. Viram no Oiticica, na Lygia Clark, nas performances, no Cildo Meireles,a arte deles próprios, só que 20 anos depois…! É impossível entenderem como aqui, nesse país de botocudos, 20 anos antes se fazia uma arte que era, para eles, supermoderna. A gente vai ter que passar 30 anos explicando e eles não vão entender do mesmo jeito. Só que isso se tornou um chamariz fascinante, daí a grande valorização – e eu não estou discutindo qualidade porque, nesse caso, trata-se de um artista de fato excepcional –, meio irreal, no mercado.
(…) Agora, com a quebradeira geral desse sistema, que a gente não sabe exatamente em que pé está e até onde chegará… Ontem à noite, por exemplo, eu vi na televisão o Obama alertando ao mundo que o sustenta: “tá começando tudo de novo”, “daqui a pouco vem outra vez”…, coisa que meia dúzia de pensadores marxistas considerados, até pouco tempo atrás,“debilóides”, “irresponsáveis”, “ortodoxos” e “anacrônicos”, não paravam de dizer… OArrighi, o pessoal doWallensteinestá escrevendo isso há 30 anos. O Mandel falava isso nos anos 1960… Enfim… É mais do que a crônica de uma morte anunciada, não é? A tristeza, para os marxistas, é que não se tem um movimento social que aproveite isso. É uma crise do sistema capitalista dentro dele mesmo, sem nenhuma força pressionando. Essa é a contradição maior da sociedade contemporânea:o sistema cai “de podre” e nenhuma força social está pronta para tomar o lugar. Nesse sentido, o marxismo entra em parafuso.
(…) O Waltercio Caldas fala que o curadorismo é a última ideologia criada no século XX. Ele tem toda razão.É uma ideologia mesmo: essa coisa do sujeito que se impõe sobre o artista, de uma poética que se coloca de fora das obras, ditando uma organização a elas… Embora essa analogia tenha cumprido um papel,por causa da crise econômica vai entrar em crise também. Porque a feira é anticuratorial. O curadorismo é uma forma ideal para as megaexposições, bienais;foi desenvolvido como um modo de trabalho que lida direto com o artista, semelhante à outrora importante figura social, recentemente falecida, que é a do crítico. Mas as feiras são uma forma contrária. Elas demandam outro tipo de manipulação, diferentedaquela realizada pelos curadores nas megaexposições. Porque as feiras são quase um retorno a uma instância pré-capitalista de relação imediata de puro negócio. Aquela coisa a que a arte se presta: ela, a arte moderna, é um objeto do mundo moderno e, portanto, do capitalismo. E as feirassão uma forma “atrasada” –ficar gritando “oh, venham ver, o meu artista é mais bonito!”, fazer festinha, coquetel, seduzir o sujeito, vender mais caro um pouco…É uma forma totalmente atrasada. O agir dos curadores está ligado à outra, vinculada ao megamercado mundial, hipervalorizado, de circuito, seja das bienais, seja dos museus, dos grandes e dos megacolecionadores… A feira não. É um lugar dos grandes, dos pequenos, dos neófitos, dos burgueses em ascensão… Igual no século XIX. É um retorno. É capaz até da figura do crítico voltar, porque em sua origem – Adorno explica isso muito bem – era o orientador do gosto burguês. O crítico levava o burguês ao mercado e dizia: “para você se artistocratizar, ter vínculos sociais, precisa ler isso, ter aquilo, comprar aquilo, se vestir assim, ir nesse lugar, agir de tal maneira…”. Depois, o crítico foi se especializando:um para a arte, outro para literatura, outro para o comportamento… Com a indústria cultural, eles entram nos jornais! E aí começa a se formar um outro circuito. No começo do século XX, surge o anticrítico: os críticos “críticos”, modernos, que pensam no negativo, cuja figura entrou em parafuso no mundo contemporâneo. Mas talvez com o sistema das grandes feiras haja um retorno dessa função… Já é meio assim. Muitos diretores de museus são orientadores de mecenas: “compre isso, faça aquilo, pegue esse garoto aqui porque ele vai dar certo e, se não der, eu faço ele dar, porque sei onde publicar, sei o que fazer, sei como valorizar…”.
Tatuí Não é bem assim… O lugar que a feira ocupa não é o dessa relação direta, porque há mil estágios, redes por trás… Como no caso do Ministério da Cultura bancar a participação brasileira na Arco. Além disso, no Brasil, o lugar que o mercado ocupa é diferente daquele que ocupa na Alemanha, por exemplo – aqui, um jovem artista faz 3 individuais em museus para depois chegar numa boa galeria; em geral, fora daqui, todos têm galeria e só depois conseguem a inserção institucional. Logo, há uma certa substituição do papel do mercado pela instituição…
Francisco Alambert Um dos exemplos que mais aparece quando falamos é o da emergência mundial dos coletivos artísticos. Uma parte deles é estimulada pela própria crise desses megasistemas. Cria-se um espaço interessante, cuja originalidade consiste em pensar articuladamente. O produto é uma produção coletiva… Mas deixa eu ser advogado do diabo: frequentemente – acho que a 27ª Bienal de São Paulo é o grande exemplo – o tipo de ação coletiva tende a ser engolfado por outro. Eu me refiro a esse tipo de organização paraestatal: terceiro setor,ONG… Não é raro que coletivos se articulem de maneira muito parecida com ONGs. Elas têm lá sua função. Em alguns lugares desempenham uma atuação relevantee frequentemente são formas simpáticas – é difícil você se opor a, por exemplo, grupos que estão alfabetizando gente, dando comida para quem está passando fome, defendendo índio, a floresta… Normalmente, quem não for um idiota é simpático às causas. Mas a ação pode servir a funções perversas, como, por exemplo, o esvaziamento do Estado, a não responsabilização da sociedade, dos ricos, em relação a um monte de coisa… As ONGs também tendem a trabalhar sobre o fragmento: vai-se lá e constrói-se um troço que age sobre uma favela; a ação pode render bons resultados, porém dentro daquele local e não no resto. O que está sendo atacado não é a pobreza, mas um efeito localizado dela. Veja o que acontece na África, um continente cuja vida humana está desaparecendo, seja pela pobreza, seja pela exclusão, seja pela AIDS… Não há lugar no mundo onde haja mais ONGs estabelecidas! Todos os países ricos que tenham qualquer problema de consciência ou que precisam justificar para o Banco Mundial ações caridosas; ou empresas que precisam fazer um marketing de sustentabilidade e responsabilidade social, metem três ONGs na Botsuana, no Sudão, não sei onde…O que não muda absolutamente nada a barbaridade. A lógica do pequeno grupo, da ação local na forma contemporânea, tende a tomar esse caminho da ONG – inclusive porque ONG, você sabe, recebe dinheiro, financiamento mundial… Está cheio de gente que vive disso. Cria-se quase que um atrelamento com a miséria: “se desaparecerem os miseráveis, desapareço eu também”. Uma situação completamente bizarra!
Tatuí Edgar Morin fala numa ética da convicção, em detrimento de uma ética da responsabilidade. A da convicção seria aquela que recusa alguns compromissos e não aceita necessariamente todas as responsabilidades. Você acredita em revolução?
Francisco Alambert Ah!, acredito, claro! Não tem absolutamente a menor chance de acontecer a revolução – alguma, em lugar nenhum, por enquanto. O que só reforça a ideia de que isso voltou a ser uma possibilidade.
Tatuí Mas pode haver revolucionários sem revolução.
Francisco Alambert Ah, pode! É o que nós estamos fazendo, é o que nós estamos conversando aqui. Não tem o menor problema, aliás, de ações como a nossa acontecerem, porque a história nos ensina a cada dia, desde a queda do Muro, que as contradições do sistema o colocam em xeque! O sistema entra em “xabu” por suas próprias lógicas e por não ter oposição… Não há oposição em lugar nenhum! Nem do tipo institucional. Ninguém aqui vai achar que a China está fora do capitalismo, que a Coreia do Norte ou Cuba têm alguma relevância no funcionamento do mundo… Nenhuma! Não há oposição nenhuma. É a primeira vez na história da humanidade! Um sistema produtivo e cultural dominante: em todas as partes, em todos os lugares, ao mesmo tempo! A totalidade, a totalização – como se diz na favela, “tá tudo dominado!” – é uma possibilidade fantástica.Ela é, em si, absolutamente nova. Repito: isso jamais existiu… Nem na história do capitalismo, nem na história de nenhuma forma pré-capitalista também. Existir uma unificação totalitária justo agora, que os pós-modernos estão falando que “não há mais totalidade”, “só há fragmentos”… O escambal! É o contrário! Agora está tudo totalizado! Tudo dominado, tudo ocupado. A lógica é uma só, funciona em todo lugar, com diferenças apenas de grau. Talvez nunca –agora vou brincar de ter surto utópico – a possibilidade da negação completa do sistema se colocou tão integralmente, porque ele está inteirinho apresentado. É bem possível que um dos desdobramentos disso seja a revolução mesmo… Porém não é a revolução da classe, a revolução do século XIX…
[1] — Francisco Alambert é professor titular da Universidade de São Paulo – USP no Departamento de História. É historiador das artes plásticas e crítico de arte. Já publicou vários artigos no Caderno Mais da Folha de São Paulo. Coordena o projeto História da Arte e da Cultura no Brasil dos Séculos XIX e XX. Tem vários artigos acadêmicos publicados sobre artes no Brasil.