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Como afirma Milton Santos, “no mundo de hoje, é frequentemente impossível ao homem distinguir claramente as obras da natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o puramente técnico e começa o puramente social”. A pureza surge, portanto, unicamente como um constructo ideológico, notadamente de origem moderna. A autonomia plena, total, é irrealizável e, dentro de certos modelos ideológicos, pode ser até mesmo considerada como apolítica ou, numa leitura ainda mais contundente, como antiética. Supor que uma pintura, assim como uma praça, ou mesmo uma paisagem, têm existências autônomas absolutas seria fechar os olhos para os vários imbricamentos da vida em suas múltiplas conexões naturais, sociais, espaciais, cognitivas, semânticas – de modo geral, culturais.
Evidenciar os sentidos causais, relacionais e conteudísticos das formas surge, então, conforme argumentou Milton Santos, como plataforma de partida para pensar e agir no mundo. Na arte, tal premissa se enraíza com impactante força. Desde sempre agindo no âmbito da forma, o século XX trouxe à arte, contudo, uma intensa autocrítica sobre essa ação. Quais seriam, na atualidade, as formas possíveis para a arte?
E mais: como pensarmos tais ‘formas possíveis’ sem nos abrigarmos numa fácil permissividade do “tudo” – na parte do confortável “pré-projeto” pós-moderno, que comemora a reunião de todas as possibilidades ao fechar os olhos para os contextos (e possíveis impedimentos) das partes? Como manter em alerta, no discurso do possível, um caráter político – para usar os termos de Milton Santos – não fabulístico? É que, como aponta Milton sobre o discurso da globalização, também grande parte do discurso político da arte contemporânea pode ser considerada como fábula.
E a ação política da arte é, hoje, bastante diversa daquela que foi há 60 ou 50 anos. Se tal prática foi engajamento, depois tornando-se contracultura, ela hoje atua de modo mais micropolítico. Parece-me que grande parte do mundo ocidental percorreu o trajeto de um modelo de pensamento e ação mais filiado à ideia de contracultura para, mais recentemente, atuar de modo diverso – dialógico, relacional, micropolítico. Sendo bem generalizante, arrisco um exemplo: mesmo havendo Cildo Meireles queimado galinhas vivas em 1970 (Totem), num claro enfrentamento político-moral-etc., o artista logo opta por uma tática mais “subversiva” com suas Inserções em Circuitos Ideológicos.Agora, em sua mostra na Tate (entre 2008 e 2009), age de modo muito diverso: nem enfrenta, nem subverte – convida as pessoas a tomarem parte de sua obra (quarta versão de Malhas da Liberdade, inicialmente de 1977), que se torna, para repetir os termos que citei anteriormente, “dialógica, relacional, micropolítica”. Ainda que, obviamente, cada um dos trabalhos mencionados guarde especificidades de interesse e abordagem e ocorra em simultaneidade com outros (diferentes), acho que colocá-los lado a lado faz vislumbrar a enfática transformação percorrida por Cildo, pela arte, pela sociedade, em suas formas de existir e agir. Mudou o espaço: retroativamente, mudam também as estratégias de ação nesse espaço.
E me parece que, diante da diversificação do espaço comunicacional em suas incríveis novas tecnologias, vários artistas têm se aproximado desse espaço para, livrando-se do peso da ideologia da autonomia, pôr em contato, dialogar. Literalmente, dialogar. É cada vez menos presente o desejo de ruptura com o espaço social e mais enfática a necessidade de conversar, compartilhar. Não é à toa que, por exemplo, o Coletivo Mergulho, cujo trabalho está originalmente focado no corpo e sua relação física com o espaço, editou o Documento: A Zona, lançado aqui há dois dias, com “conversas e trocas do coletivo através de imagem, escrita e diálogos virtuais, escolhendo o desafio de tornar a experiência artística compartilhada”. E, numa das partes do documento, em letras maiúsculas e com uma exclamação, está lá estampado “E-U-PRE-CI-SO ME SEN-TI-R CON-EC-TA-DA!”.
O modelo de ação da contracultura não foi, contudo, totalmente substituído por um mais relacional e menos violentamente combativo. Ao que me parece, tais formas de ação têm estado mais ou menos associadas na arte. A ainda intensa valorização do caráter “subversivo” da produção artística me parece sintomática dessa não substituição de um modelo pelo outro. Não são poucos os artistas que trazem, no discurso sobre a obra, a ideia do trabalho como um elemento subversivo do sistema social. Também não são poucos os críticos e curadores que o evitam. Acredito que a contraculturacoabita nossa formação epistemológica. Estamos num momento de passagem, de trânsito. As formas da arte se modificam por meio de cada um de nós – agora, aqui e muito.
Dentro desse desejo de diálogo da arte que se atira, “de peito aberto”, no espaço social, existem desafios e formas de ação bastante diferenciados. Gostaria de trazer à tona alguns exemplos que, acredito, problematizam o lugar da arte diante do espaço social e, especificamente, comunicacional.
O primeiro atualiza certos preceitos da contracultura, cuja roupagem atual enfatiza não seu caráter eminentemente afrontador (como o Totem de Cildo Meireles), mas subversivo. Trata-se da “instalação” Ouvidoria, de Lourival Cuquinha, em parceria com a dupla Hrönir, e que mixa em tempo real, no ambiente expositivo, ligações telefônicas feitas fora dele. O projeto oferece a possibilidade de efetuar ligações gratuitas em troca do direito a desviá-las para o ambiente expositivo, espacializando sonoramente o conteúdo originariamente privativo das conversas.
O trabalho elabora uma provocação no mesmo sentido daquilo que Hélio Oiticica chamou de convi-conivência [1] , neologismo que evidencia uma superficial e contraproducente convivência social conivente, na qual distinções e trocas são abafadas em nome de uma “pureza abstrata”. A exemplo de Oiticica, os artistas estão conscientes de que “é preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades (…). Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão” [2] .
Colocar a questão coletivamente, por meio de uma relação de trocas, pode ser uma estratégia apropriada para pensar criticamente o espaço social e suas dinâmicas conviventes. Ao ofertar ligações telefônicas gratuitas em troca do direito à publicização daquele conteúdo telefônico particular, mais do que promover a “interação” do público, Ouvidoria o transforma em coautor e cúmplice da obra. Não há, contudo, uma versão ingênua da ideia de cumplicidade: aqueles que telefonam, apesar de secorresponsabilizarem pelo caráter aparentemente transgressor do trabalho diante dos tradicionais limites entre o público e o privado, não são os que o pautam em inteireza. Ainda que o público, por meio de suas ligações, sugira timbres, tempos e assuntos para Ouvidoria, são os artistas que, por meio de seu software e, portanto, sob a “proteção” da “aleatoriedade”, rearticulam essas informações de modo a pôr em negociação sua “autonomia” no seio da também suposta “autonomia” do trabalho. O centro de poder da obra é mantido com os artistas, que lançam uma ação no espaço social de modo a colocar todos nós, cidadãos, em xeque. Participar da obra? Ceder minhas informações particulares? Aceitar a troca? E por quê?
Outra forma possível de ação diante de preocupações similares é o trabalho da artista Jens Haaning que, segundo narra Nicolas Bourriaud em seu livro Estética Relacional, “transmite histórias engraçadas em turco, por alto-falante, numa praça de Copenhague (TurkishJokes, 1994), criando instantaneamente uma microcomunidade – a dos imigrantes unidos por um riso coletivo que subverte sua condição de exilados – formada na obra e em relação à obra.” Diferentemente do que ocorre em Ouvidoria, não há a manipulação relativamente autoritária (relativamente, porque autorizada) do diálogo do outro, mas se ativa uma condição comunicacional do sujeito que, naquele espaço social específico, encontra-se abafada por uma situação de imigração. Ainda que se negocie, na intervenção de Haaning, um espaço social – visto que seu trabalho invade continuamente, por meio do som, o espaço público –, seu caráter “subversivo” advém não da afronta combativa a esse espaço e suas configurações (como ocorre mais diretamente nas Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles, por exemplo), mas de uma estratégia que, em última instância, visa criar um subespaço diferenciado e “desterritorializado” (porque demarcado de outro modo que não pela geografia física).É uma ação que ativa heterogeneidades de forma coletiva e pública, mantendo em aberto uma possibilidade de compartilhamento de experiência inclusive com os não alfabetizados em turco, por meio do riso.
A consciência contextual dessa intervenção é imensa. O trabalho de Haaning não apenas considera as especificidades do local onde ocorre mas, muito mais profundamente, existe apenas por conta dessas especificidades, desprendendo-se do desejo de existir autonomamente e, inclusive, sequer existindo materialmente. Como diz Milton Santos, “quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre os objetos como realidade física, mas como realidade social, formas-conteúdo.” A arte, quando deliberadamente se constrói sobre os ambientes sociais, busca agir criticamente na forma-conteúdo deles, de modo a ambivalentemente lhes problematizar as configurações, agindo, como provoca Hélio Oiticica, na contramão daconvi-conivência. Conviver não significa ser cúmplice. Existe uma “terceira margem do rio”, da mesma forma como, para Milton Santos, existe a possibilidade de uma outraglobalização,diversa tanto do discurso-fábula, quanto daquela que se revela perversa. Por isso, o discurso da não autonomia da arte tem sido cada vez mais referenciado por artistas diversos, que paulatinamente investigam formas atuais de agir socialmente (politicamente), formas que, herdando as concepções de engajamento e contracultura, atualiza-as por meio do que me parece, como tem sido tão apontado, um ativo “desejo de viver junto”.
Ativo de verdade. Senão ficaremos à espera de uma alegre realidade amarela, como provoca o Grupo GIA em sua ação/vídeo Nobody!, no qual aparecem segurando placas amarelas numa estação de trem europeia, à espera de alguém que, porventura, se identifique com aquele chamado. Como já evidencia o título do vídeo, chegam vários trens, mas ninguém se sente ali representado, esperado, demandado. Os artistas que seguravam a placa ficaram claramente intimidados, constrangidos, naquela terra estrangeira.
As interfaces de contato estão aí, a todo momento sendo criadas e difundidas por instâncias diversas da sociedade – a tecnologia, a mídia, os esportes, a geografia… A boa e velha monocromia quadrada da arte, ao que parece, realmente não funciona mais. Mesmo quando amarela-cor-de-sol-da-Bahia em meio a um ambiente frio e alemão, onde quase todos vestem preto.
[1] — OITICICA, Hélio. Brasil Diarreia, in: Arte Brasileira Hoje. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1973.
[2] — Idem.