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A despeito de todo o pesar trazido pelo incêndio do acervo Hélio Oiticica, acontecido na reserva técnica mantida por sua família numa casa no bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro, são tantas as perguntas sem resposta e os absurdos que permanecem sem explicação que, passado o choque, urge refletir.
Um dos problemas que saltou aos olhos nos dias pós-incêndio, observado a partir do bate-boca entre a família Oiticica e os gestores municipais – que, aliás, não contribuiu para esclarecer e acrescentou ainda mais controvérsias ao assunto – foi a relação público/privado e a forma como esta é praticada na sociedade brasileira, tanto do lado do cidadão, quanto do lado da administração pública. No caso do Projeto Hélio Oiticica e da Prefeitura do Rio de Janeiro, tivemos o pior exemplo – e a pior consequência possível.
Em 1996, quando o Centro de Arte Hélio Oiticica (CAHO) foi criado e destinado a abrigar o acervo do artista, num pequeno impresso conjunto Centro de Arte Hélio Oiticica/Projeto Hélio Oiticica, a Secretaria Municipal das Culturas, em texto assinado pelo então secretário Ricardo Macieira, coloca-se como “mantenedora do acervo do Projeto Hélio Oiticica”. Reconhece Hélio Oiticica como “uma das grandes expressões da arte do século XX”, como “figura seminal” e enaltece o Projeto HO: “instituição que soube bem zelar pela coleção”. Por fim, declara a intenção do trabalho colaborativo e o compromisso com “a promoção e memória da arte brasileira”. Na época o diretor do Centro era Luciano Figueiredo, curador e amigo de Hélio Oiticica, que deixou a direção em 6 meses, alegando falta de condições de trabalho por descompromisso da prefeitura. Em 2003 retorna à direção, a convite de Cesar Oiticica e Macieira, saindo em 2005, segundo consta, pelo mesmo problema com a administração municipal: falta de cumprimento do acordo.
No mérito das palavras – que no caso da gestão Macieira/Cesar Maia não tiveram valor algum – consta que há um documento, “termo de permissão de uso”, que estabelecia o acordo da prefeitura com o Projeto HO e previa a implantação da reserva técnica no prédio. Após o incêndio, Cesar Oiticica deu declarações públicas mencionando a falta de condições mínimas da reserva técnica.
Porém, saindo do mérito das palavras escritas, assinadas, lançadas ao vento e ao ralo, o maior absurdo é que o documento inicial não evoluiu para um contrato de comodato que especificaria os direitos e obrigações de ambas as partes. E neste caso a responsabilidade é dupla.
Foram 13 anos de utilização do prédio e recebimento de uma verba municipal mensal, com razoável continuidade, levando-se em conta as exposições e publicações, entre outras iniciativas que o Projeto Hélio Oiticica realizou durante este período.
Hélio Oiticica foi o único artista (embora morto) a receber mais de uma década de financiamento público no Brasil – uma corretíssima decisão de Estado se, no caso em questão, não fosse mais um factoide do prefeito… Porém fez falta, em termos de retorno à sociedade, a criação de um site do Projeto HO para, além de divulgar a obra, tornar públicas as ações desenvolvidas, assim como a destinação dada ao dinheiro investido. Todos os setores da sociedade financiados pelo Estado devem retornar o produto do financiamento e a prestação de contas. Não poderia ser diferente com o Projeto Hélio Oiticica.
Manter a situação de ocupação do prédio pelo Projeto HO de uma forma “frouxa”, sem contrato de direitos e deveres firmado e observado pelas partes e sem um acompanhamento da sociedade, revelou a falta de profissionalismo e seriedade das autoridades do Rio de Janeiro na gestão pública – sem falar no descaso com um acervo importantíssimo – mas também evidenciou a forma como o brasileiro lida com os espaços e recursos públicos: como se fossem particulares. Na ausência de definições e limites, alguns períodos sem programação e dado o vazio institucional, o espaço foi utilizado como business office, e exclusivo do Projeto HO.
Ou seja, a falta de limites claros e de transparência na relação público/privado às vezes é funcional! Pode interessar a uma das partes, à outra, a ambas…
Ali perdeu-se a oportunidade de se construir uma relação institucional exemplar e única, através da qual a obra de um artista contemporâneo estaria reunida, preservada, trabalhada, estudada, exposta e disponível para acesso público.
Se a relação da família Oiticica com a administração municipal da gestão Maia/Macieira estava desgastada, toda a classe artística do Rio de Janeiro também sofria as represálias da prefeitura, em consequência da luta vitoriosa dos artistas e demais profissionais da área contra o disparate da implantação do Museu Guggenheim no cais do porto do Rio. Foram cortadas bolsas de produção e pesquisa, desativados espaços de arte e o Espaço Cultural Sérgio Porto pegou fogo por incompetência de gestão e descaso (permaneceu fechado por um ano). Para culminar, foi desmontada a instituição das artes visuais (Rioarte), que havia funcionado por décadas com projetos importantes e bem-sucedidos – diz-se que a Rioarte foi desativada por total impossibilidade do fechamento das contas da entidade…
Todo esse esvaziamento atingiu também, obviamente, o Centro de Arte Hélio Oiticica. Em 2009 muda a administração municipal e assume a nova secretária de cultura, Jandira Feghali, por acordo político partidário. Sendo ela oriunda da área médica, sua indicação não foi bem aceita pelos artistas. Com a nova gestão e a consequente auditoria nas contas, parece ter havido um lapso de tempo, no qual o Projeto HO ficou sem definições por parte da prefeitura. No entanto, a retirada do acervo do prédio já estava sendo feita desde a gestão anterior. Inclusive a chave da sala onde se encontrava ainda uma parte do acervo, no CAHO, permanecia com a família e não foi entregue à nova diretora, a artista Ana Durães.
Parece que, com a entrada da nova secretária, houve uma precipitação na retirada do acervo do prédio. E por quê? É o caso de perguntar se a família teve receio da secretária (comunista) estatizar o acervo, atropelando a lei… Hipótese cômica, não fosse o contexto trágico, mas que seria uma ameaça a possíveis intenções capitalizantes do Projeto HO. Informações sobre os valores internacionais da obra de Hélio Oiticica e as negociações do Projeto HO estão disponíveis na mídia.
Não há utilidade em se entrar nos detalhes dos desentendimentos da nova gestão com a família Oiticica, porém é certo que o Projeto Hélio Oiticica recebeu anos de verba pública para consolidar a permanência do acervo no CAHO e mantê-lo no local. A Prefeitura, como mantenedora, teve a despesa mensal de 20.500 reais (onde estará a planilha?). Esta verba, no entanto, não seria suficiente para projetos e eventos externos ou/e paralelos às mostras no próprio local. O Projeto Hélio Oiticica também captou para isso, inclusive patrocínios governamentais.
A partir da desistência da negociação e da não criação de uma rede de amigos, artistas, curadores, críticos e cidadãos, que exercesse pressão e levasse os gestores (nos âmbitos municipal, estadual e federal) a efetivar um compromisso de comodato, o Projeto Hélio Oiticica assumiu, na prática, a inteira responsabilidade pelo destino do acervo. E isso foi dito publicamente por Cesar Oiticica após o incêndio. Assumir desta maneira a responsabilidade pelo incêndio, isentando os órgãos públicos, foi apostar na opacidade, na falta de desdobramentos, colocar-se na posição ambígua “vilão-vítima”, angariar compaixão e transferir o “lugar” do acontecimento – um lugar público, local, nacional e internacional – para o quintal de casa (literalmente).
Cria-se um vazio e a irresponsabilidade se perpetua, para além da perda do acervo, na falta de investigação das decisões e omissões do acordo, assim como das circunstâncias que levaram ao incêndio. A sociedade brasileira perde mais uma oportunidade de afirmar uma dimensão da cidadania – sempre reivindicada, reclamada, cobrada do Estado, mas não exercida –, quando se trata de afirmar este exercício por parte dos cidadãos.
Se, como todos concordam, o acervo HO é patrimônio cultural de interesse público, não chegou a ser tratado como tal por incompetência, falta de condições materiais ou desconfiança mútua. O fato é que uma administração festiva e irresponsável o colocou em risco mais de uma vez, até mesmo dentro do prédio do CAHO, onde deveria estar rigorosamente resguardado. O resultado de tudo isso é agora lamentado.
Historicamente, a pouca presença do Estado na formulação e implementação de políticas de aquisição, guarda e manutenção de acervos de artistas importantes e representativos da cultura brasileira, reflete séculos da desimportância da arte nas prioridades nacionais. Essa situação de indigência da arte vai desde a inexistência das estratégias citadas, até a despreocupação pública (do Estado e da sociedade) com a formação das gerações atuais e futuras. Não se oferece informação atualizada, histórica e contemporânea; não se prioriza a criação de conhecimento e compreensão sobre a arte – suas transformações, processos, práticas, marcos conceituais – e sobre percursos de artistas e obras, alguns fundamentais, reconhecidos internacionalmente, como Hélio Oiticica.
Nas gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura, a postura do governo vem apresentando mudanças sensíveis, inclusive demonstrando interesse em encontrar soluções para a questão dos acervos. Do lado da sociedade civil, seria o caso de acompanhar os novos tempos. Deixar de praticar o pensamento “privatista” na esfera pública e investir na criação de canais e mecanismos institucionais, como também utilizar os já existentes. Urge mudar aquele “perfil” brasileiro, tradicional, das classes abastadas, porém ignorantes, dos coronéis autoritários cujo poder se assenta no dinheiro, na propriedade da terra, no sobrenome e na peixeira… Homens com poder de vida e de morte, que subjugam os subalternos de forma desumana e cínica, porém sem cultura, sem informação ou formação alguma naquilo que faz o espírito de um povo: a arte.
Os códigos de convivência originários daí são, ainda, vigentes nas ruas e no Congresso Nacional, no campo, na cidade, nos apartamentos de classe média e nas favelas. E se este perfil é o aspecto hard das nossas classes economicamente favorecidas, urge também repensar o aspecto “sutil” deste mesmo código de convivência social, praticado pelas classes culturalmente favorecidas, em cargos públicos ou não: o tráfico de influência, o exercício do poder das relações familiares baseadas nos signos de prestígio, a busca por privilégios, a demanda privada no âmbito público, o “jeitinho”, o “agrado”, a apropriação privada dos bens e recursos públicos, o profundo desprezo pelas regras do jogo democrático.
E nesse triste evento sobressai tudo isso como sina, como índice da fragilidade da cidadania brasileira. Apesar da nossa música, da nossa arte, das nossas manifestações culturais, dos nossos músicos e artistas brilhantes, como Hélio Oiticica.