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Em razão da política de excesso que levamos na vida contemporânea, um punhado de palavras não basta – tampouco uma ou outra imagem que se embaralha em meio a tantas outras – para nos fazer brotar pensamentos reflexivos (tanto quanto as sensações de afeto). Essas passam despercebidas em nossas leituras diárias – cegas (e os sentimentos anestesiados) pelo demasiado. É como se um argumento, sob forma de palavra ou imagem, solto, estivesse destinado a um abismo irresoluto do imperceptível, promovido pelo sobejo. É (também) por isso que a arte se faz, hoje, tão necessária. Entendida não apenas enquanto obra-objeto, mas a partir daquilo no qual está fundada e instituída: consenso, dissenso, política, ambiente, cultura, economia, espaço, tempo… A imagem e o discurso na arte estão indissociáveis. Imbricados, podem ser como um soco, de punho bem fechado, na boca de nossos estômagos – que cada vez mais adquirem tolerância ao que por natureza deveria permanecer intolerável.
Embora a instituição arte já apresente sinais de muito desgaste, sobretudo no que se refere à sua complicada relação com o mercado, é (ainda) naquela que podemos vislumbrar uma potencialidade de diálogo emancipador. Refiro-me ao complexo processo de subjetivação possível na simples relação artista – obra – público. Subjetivação: palavra que soa espalhafatosa, mas a única que me pareceu melhor expressar aquilo que acredito ser a mais nobre camada da arte: tornar-se pedaço de alguém.
A obra que se deixa subjetivar cria, para além de si, uma rede de significados capaz de redimensionar as formas de olhar, até que finalmente se mudem também as formas de agir. Nesse caminho é que procuro percorrer as obras de Renato Valle. Um artista extremamente metódico quanto à forma, sensivelmente afetado pelos assuntos transformados conteúdos de seus trabalhos.
Intrigado pela estética abaulada recorrente na própria maneira de compor seus desenhos e pinturas, assemelhada aos ex-votos, lançou-se numa jornada investigativa daquilo que estaria por detrás da forma que lhe era tão familiar: apesar do artista já usar semelhante linguagem, não o fazia por conhecer profundamente os significados. Premiado com a Bolsa de Pesquisa em Artes Visuais no 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, foi à Santa Quitéria, um distrito do município de Garanhuns – abrigado no interior do estado pernambucano –, inteirar-se do universo dos ex-votos. Propôs-se a observar todo tipo de relações sociais e culturais que aconteciam em um santuário daquele lugar.
Uma vez lá, não poderia ter imaginado realidade mais agônica. Diante da miséria daquelas pessoas – munidas para enfrentar a vida, de múltiplas privações, com muito pouco além de uma imensa fé –, viu-se atormentado, entre tantas questões, pela mercantilização das coisas espirituais. Os ex-votos são objetos revestidos de uma dimensão fantástica aos olhos daquele que tem fé. Na certeza inabalável de ter conseguido uma dádiva alcançada por meio de sua crença, em um ato de gratidão, o crente devolve no ex-voto a magia que “transformou” em realidade o sonhado.
Poderosa, essa fé que impulsiona e é a ventura daqueles tantos (sem esta e por muito menos privações a maioria de nós, no lugar deles, daria a vida por encerrada), Renato a observou perversamente agenciada num universo mercantil (que nenhuma relação deveria ter com as coisas espirituais) em um modo capaz de paralisar o tempo, no qual não há fissuras para que exista qualquer mecanismo de transformação. Se por um lado, quem compra vê o encanto da sua fé materializado no objeto adquirido, para depois ofertá-lo, não é menos encantado (embora nem sempre pelas mesmas razões do crente devotado) tal objeto para quem o produz com seu suor e talento. Para aquele que vende, contudo, o ex-voto nada tem de mágico, senão na maneira de “fazer” dinheiro fácil. Ao que parece, os vendedores estão alheios a esta perversão do mercado da espiritualidade (há quem diga que se vive paralelo semelhante no atual universo da arte).
Abalado pela realidade encontrada, depois de um mês iniciou um projeto chamadoCristos Anônimos, que trata da dicotomia mística cravada na cruz: martírio e redenção. A pesquisa rendeu ao final da bolsa uma série de gravuras. Verticais, todas são estruturadas por colunas que formam cruzes de votos e/ou ex-votos, cercadas por imagens repetidas de partes do corpo de Cristo, retiradas de obras de outros autores, apropriadas e utilizadas pelo artista. A experiência desse processo também viria alimentar o seu Diário no momento em que representa homens, mulheres e crianças de braços abertos em situações de martírio e/ou redenção: uma mulher que se abre para acolher alguém num abraço, um goleiro que se prepara para a glória ou a vaia, um homem desnudo em completa vulnerabilidade… Anônimos também são esses tantos “Cristos” vistos e, na maioria das vezes, não percebidos.
Durante a construção do trabalho, a simbologia católica ganha cada vez mais peso em suas reflexões. Num passo não muito distante, voltou-se também a si mesmo, à própria religiosidade, distinta do catolicismo, ainda que igualmente cristã, desde os primeiros desenhos que formam o seuDiário de Votos e Ex-Votos.Tal diário não só é um registro iconográfico de acontecimentos pungentes (tanto sociais, quanto pessoais), mas também exercício de uma dimensão espiritual da compaixão. Por um lado, Renato Valle – sempre apegado às suas pesquisas da forma – experimentava diversos tipos de grafites, desenhos com palitos (revelados pelo pó cinza), ou tipos de cores que enriquecessem o preto a ser impresso sobre o papel bege que formaria uma gravura. Por outro, na experiência do diário vivia uma catarse. Para cada desenho, existe um “voto”, um pedido em favor da resolução de um drama (naquele momento ele se via coapaixonado, coenvolvido)– como no conjunto de 243 desenhos de crianças desaparecidas, feitos a partir de imagens retiradas da página do Ministério da Justiça, com a exceção de uma foto que ilustrava a página de um jornal – ; ou um “ex-voto”, como forma de agradecimento por aquilo que tinha sido sanado.
De volta ao que comecei dizendo: ora, nem um punhado de palavras, nem uma imagem esvaziada, por estar em meio a tantas outras, são capazes de nos mover do estado de inércia que nos acomete nessa existência que levamos: de um muito, tudo. Acostumados com o excesso, tornamo-nos incapazes de absorver (sobretudo, reflexivamente) as graves questões que dia a dia nos ameaçam. Nesse sentido, é que penso na arte como uma agenciadora de mudanças.
A instituição da arte, entendida, além da obra-objeto, como o ambiente que essa cria – sua própria economia, sua própria política – pode deslocar situações do cotidiano de modo que as possamos enxergá-las. Senti-las. E nessa direção, torná-las parte de nós e, por nossa conta, talvez, causar alguma alteração externa. A subjetivação, como é possível perceber, está na criação e recepção da obra. Absorvendo a política de excesso da vida contemporânea, Renato a desloca e a ressignifica no paradoxo, sensivelmente criado, de síntese e excesso (imagens e discurso imbricados), em sua obra-diário, sempre munido de compaixão. Se pelo excesso do nosso diariamente nos anestesiamos, pelo seu excesso constituído unidade-obra, Renato dá-nos a chance de uma leitura que não seja mais cega. Resta saber, depois de termos sido expostos a tudo isso, o quanto vamos tornar nosso, o quanto nos coapaixonaremos. De outro modo, terá sido apenas mais um soco – como tantos outros que passivamente aprendemos a levar, tolerando o intolerável.