Revista Tatuí

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COTIDIANO reflexões atuais e (in)oportunas

Escrito por Marcus Vinícius

Há algum tempo tenho pensado/realizado ações e projetos que colocam em questão uma relação peculiar com a experiência e a percepção da vida cotidiana, com aquilo que nos sucede e nos rodeia no transcurso das vivências e dos gestos mais próximos e comuns. Em consequência, o cotidiano nos remete à prodigiosa diversidade da vida diária e ordinária: os instantes e os acontecimentos, os seres, os lugares e os objetos. Um campo que oferece um amplo espectro de assuntos, sentidos, formas, atos possíveis e reconhecíveis. Neste contexto, podemos pensar no cotidiano como a medida de todas as coisas: do entendimento, ou melhor, do desentendimento das relações sociais, do uso do tempo vivido (banal, trivial, repetitivo). Como disse Henri Lefebvre em Crítica da vida cotidiana, “O mundo humano não está definido simplesmente pelo histórico, pela cultura, pela totalidade ou pela sociedade em seu conjunto, nem por superestruturas ideológicas e políticas. Está definido por um nível intermédio e mediador: a vida cotidiana”.   [1]  .]

O cotidiano é um terreno fértil para a reflexão, a percepção e a imaginação dos modos e experiências do real; um terreno repleto de microssaberes que permitem discernir tendências sociais, culturais e políticas. O cotidiano constitui o nível da realidade no qual se enfrentam, dialeticamente, a natureza e a cultura, a história e o presente. Também podemos dizer que constitui o âmbito das transições, das resistências e das fragmentações. Pensar e representar o cotidiano implica, por consequência, abordá-lo como um âmbito diverso e complexo, disponível a todo tipo de potencialidades, fraquezas e oportunidades. Um âmbito de práticas, combinações e (re)invenções que tendem a escapar às lógicas de categorização e cuja compreensão exige uma análise muito particular, porque implica saberes e qualidades encontradas fora dos contextos institucionais e especializados, das pré-qualificações e das classificações uniformizadoras.

A partir de uma investigação na qual o cotidiano nos fez encontrar reflexões atuais e (in)oportunas de artistas que produzem obras convergentes/divergentes em relação a algumas das questões mais decisivas de nossa época, apresentamos este texto como um espaço aberto às sensibilidades, motivações e comportamentos, compondo um breve panorama atual das práticas da imagem. O interesse pela cotidianidade requer adequar-se à convocação de um conjunto de propostas visuais que, por suas qualidades estéticas, perceptivas e especulativas, permitem definir uma cultura particular de representar e analisar o real.

Com o dossiê COTIDIANO, refletimos sobre essas imagens que reproduzem e reconfiguram a vida cotidiana. De fato, nos últimos anos se pode constatar na fotografia, no cine documental, na videoarte, uma proliferação tanto de propostas, quanto de objetos visuais que focalizam e exploram o movimento banal das situações do dia a dia. Em certo sentido, podemos dizer que estamos diante de sintomas de um novo apego por algo genuinamente trivial, reconhecível e verdadeiro.

Num mundo inevitavelmente marcado (e homogeneizado) pelos efeitos da globalização econômica e cultural, assim como por formas avançadas de comunicação espetacular, resulta significativo e revelador assistir à crescente presença de artistas que optam por recorrer a linguagens simples e imediatas para abordar a realidade. É um forte discurso que se baseia na experiência individual, na capacidade do artista de compartilhar situações, vivências e relações concretas. Deste modo, tal discurso pode ser abordado como um canal privilegiado de investigação, ou reinvenção, de alternativas de estar e viver. Trata-se de potencializar aquilo que Maurice Blanchot sugeriu em La parole quotidienne: “Todo indivíduo leva em si um conjunto de reflexões, de intenções, isto é, de reticências, que o aproximam de uma existência oblíqua”.   [2]  

O oblíquo é o espaço, o intervalo por onde o indivíduo escapa do lado (auto)controlado da vida.

As poéticas estudadas procuram revisitar as histórias e reconstruí-las para claramente se distanciarem de narrações extraordinárias, heróicas e espetaculares, que se encontram veiculadas de forma persistente pelo discurso televisivo, publicitário e político. Do mesmo modo, prescindem das lógicas da cultura contemporânea, determinadas pela autonomia virtual e pela imaterialidade da tecnologia digital. Daí surge certo ímpeto de despertar uma sensibilidade, em realidade uma afetividade, que se defina a partir das práticas e das ideias do cotidiano, com o objetivo de (re)presentar um mundo acessível e comum, às vezes monótono e trivial, mas apesar de tudo profundamente impregnante. Isso quer dizer que a expressividade e os conhecimentos que emanam do banal não produzem de forma inevitável obras banais. Ao contrário, este retorno ao básico e ao essencial parece surgir do seguinte desafio: o cotidiano constitui o terreno primordial e legítimo à construção de um imaginário extraordinário, necessariamente elaborado a partir do comum. As imagens dirigem nossa atenção a uma subjetividade baseada em gestos simples, comuns e familiares, que refletem impulsos, idiossincrasias e relações de proximidade com o devir cotidiano.

Hoje parece claro que, para muitos artistas, o cotidiano éum terreno suficientemente autêntico e democrático (além de libertador), pois propiciaria uma criatividade espontânea e genuína, sem limitações disciplinares ou institucionais. Neste contexto, o cotidiano se (re)configura a partir da ideia de que a arte pode ser iluminadora. Ela também teria o potencial de revelar formas de vivência e convivência mais livres e simples, porém fortemente significativas. É o cotidiano que proporciona esse nível básico de efervescências e derivações originais, intuitivas, motivo pelo qual constitui um âmbito tão atrativo – tão natural –aos artistas.

A vida cotidiana é um território aberto a todo tipo de incursão, que permite todo tipo de gestos suscetíveis a analisar e reconverter o sentido e o papel das artes visuais. Dentro deste contexto, nossa incursão aqui procura reunir autores e imagens de diferentes gerações, procedências geográficas, tendências estéticas e conceituais. Uma plataforma aberta sobre as imagens do cotidiano, através de um conjunto heterogêneo de práticas que se ramificam por diferentes identidades e formas: as poéticas próximas ao realismo crítico; as reformulações e atualizações das estratégias e estilos documentais; dos modos confessionais às estéticas informais; obras em cine/vídeo, com ênfase no recurso de planos-sequência e a imagens em tempo real.

Artistas voltados ao cotidiano estão implicados na reformulação e (re)invenção de poéticas, cujas obras possam se inserir em um contexto de renovada fé numa arte contemporânea que reflita a realidade e se comprometa com ela. Práticas de imagem que examinem as convenções da história da arte, enquanto abrem espaço e dirigem a atenção à experiência individual, afirmando suas diferenças, singularidades e idiossincrasias.

No cotidiano tudo se expressa e se reinventa, até a própria cotidianidade.

[1] — Henri Lefebvre, Fondements d’une sociologie de la quotidienneté, in Critique de la vie quotidienne, II, París, L’Arche, 1961; Foundations for a Sociology of the Everyday, in Critique of Everyday Life, II (John Moore, trad.), Londres / Nueva York, Verso, 2002, p. 45 [Fundamentos de una sociología de la cotidianidad, en Crítica de la vida cotidiana, Barcelona, Anagrama, 1973

[2] —  Maurice Blanchot, «La parole quotidienne», La Nouvelle Revue Française, n.º 114, París, 1969; publicado posteriormente em inglês: «The Everyday Speech» (Susan Hanson, trad.), in Yale French Studies, n.º 73, Yale University Press, 1987, p. 12.

COTIDIANO reflexões atuais e (in)oportunas / Escrito por Marcus Vinícius / Revista Tatuí Edição 08 / www.revistatatui.com.br