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O cotidiano é um terreno fértil para a reflexão, a percepção e a imaginação dos modos e experiências do real; um terreno repleto de microssaberes que permitem discernir tendências sociais, culturais e políticas. O cotidiano constitui o nível da realidade no qual se enfrentam, dialeticamente, a natureza e a cultura, a história e o presente. Também podemos dizer que constitui o âmbito das transições, das resistências e das fragmentações. Pensar e representar o cotidiano implica, por consequência, abordá-lo como um âmbito diverso e complexo, disponível a todo tipo de potencialidades, fraquezas e oportunidades. Um âmbito de práticas, combinações e (re)invenções que tendem a escapar às lógicas de categorização e cuja compreensão exige uma análise muito particular, porque implica saberes e qualidades encontradas fora dos contextos institucionais e especializados, das pré-qualificações e das classificações uniformizadoras.
A partir de uma investigação na qual o cotidiano nos fez encontrar reflexões atuais e (in)oportunas de artistas que produzem obras convergentes/divergentes em relação a algumas das questões mais decisivas de nossa época, apresentamos este texto como um espaço aberto às sensibilidades, motivações e comportamentos, compondo um breve panorama atual das práticas da imagem. O interesse pela cotidianidade requer adequar-se à convocação de um conjunto de propostas visuais que, por suas qualidades estéticas, perceptivas e especulativas, permitem definir uma cultura particular de representar e analisar o real.
Com o dossiê COTIDIANO, refletimos sobre essas imagens que reproduzem e reconfiguram a vida cotidiana. De fato, nos últimos anos se pode constatar na fotografia, no cine documental, na videoarte, uma proliferação tanto de propostas, quanto de objetos visuais que focalizam e exploram o movimento banal das situações do dia a dia. Em certo sentido, podemos dizer que estamos diante de sintomas de um novo apego por algo genuinamente trivial, reconhecível e verdadeiro.
Num mundo inevitavelmente marcado (e homogeneizado) pelos efeitos da globalização econômica e cultural, assim como por formas avançadas de comunicação espetacular, resulta significativo e revelador assistir à crescente presença de artistas que optam por recorrer a linguagens simples e imediatas para abordar a realidade. É um forte discurso que se baseia na experiência individual, na capacidade do artista de compartilhar situações, vivências e relações concretas. Deste modo, tal discurso pode ser abordado como um canal privilegiado de investigação, ou reinvenção, de alternativas de estar e viver. Trata-se de potencializar aquilo que Maurice Blanchot sugeriu em La parole quotidienne: “Todo indivíduo leva em si um conjunto de reflexões, de intenções, isto é, de reticências, que o aproximam de uma existência oblíqua”. [2]
O oblíquo é o espaço, o intervalo por onde o indivíduo escapa do lado (auto)controlado da vida.
As poéticas estudadas procuram revisitar as histórias e reconstruí-las para claramente se distanciarem de narrações extraordinárias, heróicas e espetaculares, que se encontram veiculadas de forma persistente pelo discurso televisivo, publicitário e político. Do mesmo modo, prescindem das lógicas da cultura contemporânea, determinadas pela autonomia virtual e pela imaterialidade da tecnologia digital. Daí surge certo ímpeto de despertar uma sensibilidade, em realidade uma afetividade, que se defina a partir das práticas e das ideias do cotidiano, com o objetivo de (re)presentar um mundo acessível e comum, às vezes monótono e trivial, mas apesar de tudo profundamente impregnante. Isso quer dizer que a expressividade e os conhecimentos que emanam do banal não produzem de forma inevitável obras banais. Ao contrário, este retorno ao básico e ao essencial parece surgir do seguinte desafio: o cotidiano constitui o terreno primordial e legítimo à construção de um imaginário extraordinário, necessariamente elaborado a partir do comum. As imagens dirigem nossa atenção a uma subjetividade baseada em gestos simples, comuns e familiares, que refletem impulsos, idiossincrasias e relações de proximidade com o devir cotidiano.
Hoje parece claro que, para muitos artistas, o cotidiano éum terreno suficientemente autêntico e democrático (além de libertador), pois propiciaria uma criatividade espontânea e genuína, sem limitações disciplinares ou institucionais. Neste contexto, o cotidiano se (re)configura a partir da ideia de que a arte pode ser iluminadora. Ela também teria o potencial de revelar formas de vivência e convivência mais livres e simples, porém fortemente significativas. É o cotidiano que proporciona esse nível básico de efervescências e derivações originais, intuitivas, motivo pelo qual constitui um âmbito tão atrativo – tão natural –aos artistas.
A vida cotidiana é um território aberto a todo tipo de incursão, que permite todo tipo de gestos suscetíveis a analisar e reconverter o sentido e o papel das artes visuais. Dentro deste contexto, nossa incursão aqui procura reunir autores e imagens de diferentes gerações, procedências geográficas, tendências estéticas e conceituais. Uma plataforma aberta sobre as imagens do cotidiano, através de um conjunto heterogêneo de práticas que se ramificam por diferentes identidades e formas: as poéticas próximas ao realismo crítico; as reformulações e atualizações das estratégias e estilos documentais; dos modos confessionais às estéticas informais; obras em cine/vídeo, com ênfase no recurso de planos-sequência e a imagens em tempo real.
Artistas voltados ao cotidiano estão implicados na reformulação e (re)invenção de poéticas, cujas obras possam se inserir em um contexto de renovada fé numa arte contemporânea que reflita a realidade e se comprometa com ela. Práticas de imagem que examinem as convenções da história da arte, enquanto abrem espaço e dirigem a atenção à experiência individual, afirmando suas diferenças, singularidades e idiossincrasias.
No cotidiano tudo se expressa e se reinventa, até a própria cotidianidade.
[1] — Henri Lefebvre, Fondements d’une sociologie de la quotidienneté, in Critique de la vie quotidienne, II, París, L’Arche, 1961; Foundations for a Sociology of the Everyday, in Critique of Everyday Life, II (John Moore, trad.), Londres / Nueva York, Verso, 2002, p. 45 [Fundamentos de una sociología de la cotidianidad, en Crítica de la vida cotidiana, Barcelona, Anagrama, 1973
[2] — Maurice Blanchot, «La parole quotidienne», La Nouvelle Revue Française, n.º 114, París, 1969; publicado posteriormente em inglês: «The Everyday Speech» (Susan Hanson, trad.), in Yale French Studies, n.º 73, Yale University Press, 1987, p. 12.