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Faz tempo que nos falamos, mas chego veloz para te contar que resolvi arriscar um relato de memórias. Temo ter adentrado, com barulho, em partes de mim que dormiam em sono prazeroso, mas não se preocupe, pois se acordei meus monstros, voltarei a brincar com eles.
Uma década é o período que tanto distancia, quanto aproxima, as propostas das “operações artístico-performáticas” [1] de A Coisa em Si – realizada entre os anos de 1997 e 2002 –, e Plus Ultra – iniciada em 2007 sem previsão de finalização –, cujos acontecimentos são, respectivamente, a ingestão de uma sopa (de pedras) e o remar por entre rios (urbanos).
Antes de apresentar, parcialmente, as especificidades (estruturais e imagéticas) das propostas, chamo atenção à tessitura de suas relações, através deste evidente jogo de semelhanças:
Insisto que não se preocupe. Passei muito tempo longe, eu sei, as coisas mudaram de lugar, eu sei, mas agora adquiri a agilidade do deslocar, por exemplo: sentada sobre a flecha, percebo a distância percorrida, mas aqui, onde o fora e o dentro se encontram, o tempo é outro: sinto o líquido quente tomando o corpo e por cima avisto-me numa face lisa e encarnada.
A ingestão de uma “sopa de pedras” é o acontecimento da performance, que ocorre sempre numa instalação denominada Barco, onde a repetição do gestual de refeição (sentar a uma mesa, servir-se em um prato, usar talheres) se alterna a outros que, por sua vez, relocam diversos objetos no ambiente [2] .
A “sopa de pedras” é a resultante de uma “mistura” de pedras pertencentes ao local onde a performance se realiza e de pedras recolhidas do local da apresentação anterior [3]
Concebido como um locus ritualístico, Barco lida com a mediação do público, permanecendo como obra em exposição, e com as alterações ocorridas após a apresentação. Obra multimídia, que explora distintamente o potencial hipnótico do audiovisual ao repetir, de maneira contínua, um mesmo conteúdo. O áudio é uma leitura, feita por uma hora, do seguinte texto de minha autoria:
“Levar de um lugar ao outro e depositar uma coisa em um lugar. O lugar onde esta coisa ficará já não é mais o lugar – é a coisa. Metamorfose de espaço em matéria? O lugar deixa de ser puro? As coisas não são puras. O lugar para existir depende do gesto que o aponte, da linha que o delimite, de uma coisa que o preencha? A coisa, por sua vez, necessita do lugar que a receba, que a torne necessária, que a identifique entre tantas outras coisas? Há um espaço a ser preenchido? Há um vasto espaço. E as coisas são ocupações de espaços… E gestos locam-deslocam-relocam coisas no espaço. Neste lugar, esta coisa, neste gesto? Lugar persegue coisa e gesto; coisa persegue gesto e lugar; gesto persegue lugar e coisa… Uns e outros, por vezes, completam-se e anulam-se? Há um registro da transposição de informações: um entreposto – lugar sem perguntas e respostas; ocupado pelo incerto, por manuseios e superações. E a coisa está num lugar que não se preencheu? É possível que reste um lugar… Outra coisa-lugar. É dado um encontro e repito e repito e repito – persigo: um mesmo outro gesto que se transmuda em coisa, que se transmuda em lugar, que se transmuda em encontro. Informo: por simbioses, por desdobramentos. Não faço nada, coisas estão feitas, estão no mundo – é reduplicar-se”.
O girar da leitura transforma o gestual da performance em ritornelo imagético de simples ações, produzindo no público uma incômoda expectativa por algo: estranhamento diante da aparente repetição do mesmo, que fui apreendendo nos diferentes olhares por onde tomava a sopa. Passei a chamar o público de “paisagem móvel” por não saber onde iria atravessar – enigmáticas gargalhadas em Fortaleza, discussões políticas em Belém, espetacularização em São Paulo e outras reações em diferentes lugares. A última sopa fiz para amigos, trancafiada no frio de uma pequena casa no Paraná. Não sabiam ser a última. Todos acharam que eu estava estranha demais, talvez porque tenha pedido para conversarem e esquecerem que eu estava ali, que algo acontecia.
Ainda não é total a recuperação das ranhuras causadas pela última infecção. Mas os músculos estão mais evidentes. Certo dia me surpreendi diante de um gigantesco espelho de rebuscada moldura em jacarandá – haviam veias saltando do meu braço direito. Quase beijei o que via, mas preferi lançar um balde de chumbo contra o reflexo e sentir o que é potência muscular.
Estar no meio da umidade exige equilíbrio e força – esta é a experiência do rio. Plus Ultra propõem uma experiência geovirtual, conduzida pela minha imagem remando por rios diversos. A ideia é constituir imbricações de paisagens diferenciadas ao longo do fluir constante do remar entre rios, conectando imageticamente territórios fisicamente distantes, justapondo paisagens de outros rios, de outras remadas, à remada mais recente. Fluir de águas, nuvens, vegetações, pessoas, animais, constructos urbanos, enfim, tudo que se passa diante de um barco que passa. Trata-se de operação acumulativa: uma próxima cidade-águas imbrica-se a esta e assim ad infinitum.
Do que realizo remando, uma câmera capta o que desconheço – minha face posterior: cabelo-linha-trança; musculatura das costas em esforço; abrir e fechar de braços, manejando pás de remo. O exercício técnico é repetição do mesmo, imagem cristalizada em silêncio minimal, não fosse esta imagem imbricada ao seu oposto – a paisagem em mutação.
Cinco anos após ter ingerido a última sopa, adentrei em uma estreita caixa para deslizar por águas turvas. Processo de escape da invisibilidade interior, exposta no exterior – corpo revirado, das vísceras aos membros. Levei um susto ao perceber o que havia ocorrido ao longo dos anos exposta aos variados públicos de arte – me contaminei com a dúvida do outro sobre a pertinência da ação e do corpo-artista: o que eu fazia ali, simplesmente tomando uma sopa inexistente? E fiz este agora: o que faço ali, transfigurada de atleta, riscando rios? Fui sopa e sou ponte – e ao inverso. O cansaço muscular lembra o estômago largo e, por vezes, pesado, após tensas apresentações. Não sei por quanto tempo meu corpo suportará rasgar paisagens e intuo ser este o motivo de estar aqui. Sim, é por essa questão – quanto tempo mais? –, que assumo este breve relato. Exercendo a intenção dos memorandos vim evitar o iminente desaparecimento do que foi e é vivido. Pois aqui, no campo das artes, dessas artes do corpo, o vivido tanto se revela, quanto se esconde, na mágica precariedade que se faz potência no curto espaço-tempo de uma performance.
Pensei que fui tola não ouvindo o mestre alertar da minha fragilidade e que precisava proteger meu corpo. Será necessário, de fato, proteger o corpo? Mas como? Preferi arriscar, ou arrisquei sem dar conta do risco? Pensei haver morrido e que não mais sentiria paisagens entre mim. Até que, na minha cegueira comecei a dançar e perceber que outros dançavam comigo. Nada tão bonito como as paisagens peliculares de corpos no escuro.
[1] — Esta nomeação decorre de, na minha produção em artes plásticas, as performances operarem um input criativo gerador de séries de obras em linguagens diversas (fotografia, desenhos, objetos, pinturas, instalações, vídeos, livros de artista, etc.).
[2] — As ações ocorrem sem sequência pré-determinada e se limitam a: sentar-se à mesa; colocar as mãos sobre a mesa e olhar para os objetos; destampar o caldeirão; levantar da cadeira e ir até “fogão” (TV passando imagem de uma pedra em chamas que, dentro de uma gaiola de pássaros, realiza contínuo movimento pendular; sobre o aparelho de TV, um caldeirão contendo a sopa de pedras.); dispor a tampa do caldeirão sobre a mesa; pôr concha no interior do caldeirão; pegar o prato que está sobre a mesa e encher com sopa; ingerir a sopa; pegar o prato sobre a mesa e despejar o resto de sopa no “filtro”(gaiola de codornas contendo reprodutor de áudio. Em cima dela, um aquário de vidro onde é despejada a sobra da sopa); embrulhar o prato em folhas de papel carbono; embrulhar colher em folhas de papel carbono; pôr prato embrulhado em papel carbono no “filtro”; pegar pedra no interior do caldeirão e colocar sobre a mesa.
[3] — . O tempo de seu cozimento é por volta de meia hora (antes da apresentação), sendo exposta na instalação no grande caldeirão da sua preparação.
[4] — Entre os anos de 2007 e 2009 Plus Ultra aconteceu no Rio Capibaribe (Recife, 2007); Baía de Vitória (Vitória, ES, 2008 – por ocasião de premiação no VII Salão Bienal do Mar); Baía do Guajá (Belém, PA, 2009 – por ocasião de premiação no Prêmio SIM de Artes Visuais-2008); e, ao longo do primeiro semestre de 2009, como realização do projeto premiado no programa “Bolsa de Incentivo à Produção Artística – FUNARTE- Minc- Artes Visuais: região sudeste, 2008”, em cinco locais/águas, nas cinco regiões do país, sendo estas: Rio Negro (Manaus, AM), Lago Paranoá (Brasília-DF), Rio (Lago) Guaíba (Porto Alegre, RS), Lagoa Rodrigo de Freitas (Rio de Janeiro, RJ), Baía de Todos os Santos (Salvador, SP).