Revista Tatuí

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Sobre Fabinho

Escrito por Cristhiano Aguiar

Em certo momento da peça Hamlet, dois coveiros, enquanto trabalham, conversam sobre as injustiças da vida. Reclamando que vão dar sepultura cristã a uma suicida, lamentam: “o mais triste é que os figurões têm mais direito de afogar-se ou de enforcar-se do que todos os demais cristãos”. A cova que cavam se destina a Ofélia, amada de Hamlet. Então, um coveiro pergunta ao outro: “Quem faz construções mais sólidas do que o pedreiro, o carpinteiro ou o engenheiro?”. A resposta: “o construtor de forcas, pois a sua armação sobrevive a mil inquilinos”.

É de Hamlet, esse louco genial, uma das melhores definições práticas de ironia que conheço. Escandalizado porque um destes coveiros está cantando, o príncipe da Dinamarca diz: “Será que este homem não tem consciência do seu ofício? Canta enquanto abre uma cova!”.

A ironia é uma das marcas do trabalho de Fabinho e podemos afirmar que, sim, ele está bem consciente do próprio ofício. Sua investigação de temas como o corpo, ou a cidade, se fundamenta, com muita frequência, sobre a clave de um riso meio torto, que dá com uma mão para tomar com a outra.

Este humor pode tanto estar presente de forma mais explícita, como num dos trabalhos da série Om nibus, em que diversos copos são colocados sobre gelos baianos em avenidas do Recife, quanto de forma mais implícita, como no projeto Nosso Romance?, no qual é a ironia que dá direcionamento ao tom kitsch da decomposição de um corpo que se sexualiza na deformidade.

Todos conhecem os trambolhos que ficam ao redor dos remendos que a má gestão pública causa nas ruas das cidades brasileiras: para afastar os carros de buracos recém-abertos, ou mal-tapados, muitas vezes fazem-se círculos ou quadrados ao redor deles, usando estacas de madeira enfiadas em latões cheios de cimento, estacas unidas por fitas sinalizadoras. Ao fotografar um destes trambolhos e imputar-lhes uma “autoria”,Fabinho transforma um evento do cotidiano numa intervenção. A ironia se completa com o trocadilho da palavra Ring, que significa, em inglês, anel, mas cuja sonoridade lembra o português “ringue” – sonoridade reforçada pela própria imagem, que lembra um ringue. Esse trocadilho é um gatilho que aponta para diversas possibilidades de sentido, acentuando a percepção de que os grandes centros urbanos brasileiros são, cada vez mais, zonas de tensão, de conflito (mas não deixa de ser um alívio sabermos que, se as tensões sociais e a má urbanização não garantem o bem-estar e a segurança de pedestres e motoristas, pelo menos os buracos das ruas estão protegidos dentro dos seus ringues).

Ring se realiza com um mínimo de, digamos, “mão na massa”, pois se trata basicamente de um conceito estético que reescreve um fato contido no mundo. Cada vez mais, falar em arte implica em falar de um gesto criador inteligente. Um bom artista precisa pensar e pensar. Vamos a um exemplo interessante, que depois amarraremos com uma reflexão a partir de Artur C. Danto. Passeava no calçadão da praia com minha namorada, quando, em certo momento, ela pediu que eu parasse. Observou por alguns segundos um prédio, localizado no outro lado da avenida, e me disse: “olha, aquelas estruturas de ferro, tecido e corda, por um segundo pensei que fossem um trabalho de arte”. Ela se referia a toda uma estrutura montada para efetuar algum tipo de reforma no prédio. No ensaio Arte e Significado, Danto nos dá diversos exemplos de eventos do cotidiano que poderiam ser considerados instalações, performances, etc. A seguir, ele conclui: “é marca do nosso tempo que todas as coisas possam ser vistas como um trabalho de arte e em termos textuais”. É como se o mundo todo exalasse um certo potencial de poeticidade. Não é que a natureza, ou o cosmos, sejam por si só sensíveis, ou poéticos, no sentido de que possuam uma essência, mas sim que os domínios da arte implicam numa tensão entre a sensibilidade do artista e tudo aquilo que o rodeia. O poético se localiza numa relação, às vezes frágil, sempre movediça, entre a criatividade direcionada do ato criador e todos os que estão dispostos a sentir. Esta liberdade de caminhar criativamente através das mais variadas experiências é uma das mais importantes conquistas da arte nestas últimas décadas.

Um exemplo dessa liberdade da qual falo se encontra no trabalho Look my face thatlikeyou, que consiste num roteiro de performance-instalação aplicado numa parede. Ler o roteiro transforma o próprio projeto num trabalho de arte; a performance não acontece num espaço físico, mas sim na imaginação do leitor. A participação do público se completa com um questionário, em que há perguntas como: “Vale a pena executar a obra ou é suficiente apenas lê-la? No caso de valer a pena, há chances de ser executada e como se faria?”. Se uma leitura de uma obra já implica numa construção, pois todo tipo de arte (artes visuais, literatura, cinema, dança, entre outras) só se realiza quando se torna experiência, em Look my face thatlikeyou essa interatividade é destacada para amplificar o resultado do trabalho.

Outro trabalho em que a palavra desempenha papel fundamental é a série Castigo Divino. Neste caso, o texto deslocado não é o de projetos de performance, mas uma série de prescrições retiradas de uma cartilha produzida por uma igreja evangélica pentecostal. Essas prescrições são aplicadas em cinco pratos de louça. Um dos textos mais divertidos é este: “Castigo Divino 3 – O ânus é sujo, fétido e possui em suas paredes milhões de bactérias. É o esgoto, propriamente dito. No esgoto só existem ratos, baratas e mendigos. A pessoa que sodomiza, ou é sodomizada é igual a um rato pestilento. (…) Mas o pior é quando o ato é homossexual, pois o passaporte dessa infeliz criatura já está carimbado nos confins do inferno”. Aquilo que era um sinônimo de ortodoxia e agressão adquire, deslocado do seu contexto original, um tom de ridículo. As palavras implodem a si próprias. É como um filme pornô que só consegue fazer rir, não excitar. Nesse sentido, Fabinho desempenha um papel de terrorista. Outra vez, o apelo à imaginação é fundamental, pois a carne do corpo está escondida por trás das palavras satirizadas e este corpo só fica nu na nossa imaginação. A metáfora dos pratos nos lembra que muitos banquetes nada mais são do que sacrifícios e que a origem das palavras “missa” e “culto” está ligada a esta ideia. Para Bataille, em O erotismo, o sacrifício é uma “transgressão desejada”, pois “a carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência”. A série Castigo Divino nos mostra que, muitas vezes, um pastor radical enxerga no espelho um libertino: um celebra o excesso, o outro o sacrifica, entretanto ambos estão preocupados com esse império sobre o corpo do Outro.

O corpo, a palavra e a cidade são resgatados das suas funções pragmáticas e colocados numa saudável ambiguidade. Em Fabinho, a arte se engaja num compromisso sensível com o outro. Sem perder a elegância da piada.

Sobre Fabinho / Escrito por Cristhiano Aguiar / Revista Tatuí Edição 08 / www.revistatatui.com.br