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Em retrospecto, posso entender que Monumetriapudesse ser visto como um projeto pretensioso. Não porque buscasse resultar em obra grandiosa, mas por tratar de tema tão em voga hoje, a especificidade, de um ponto de vista problematizador.
Como ponto de partida, se apropriava de um fato peculiar:a desmontagem do Monumento a Ramos de Azevedo e sua retirada da Avenida Tiradentes em 1968, assim como sua remontagem na Cidade Universitária em 1974,(incluso o período em que esteve desmontado no Parque da Luz).Tal deslocamento revelava a tensão entre os significados que o monumento carregava para a elite que o havia patrocinado e as necessidades de reestruturação urbana que levaram à sua remoção. De seu deslocamento inicial e seus consequentes desdobramentosse colocava a questão: o que e o quanto pode este processo de transferência revelar sobre a condição de adaptabilidade requerida à produção artística contemporânea, que se encontra fortemente orientada para a especificidade?
Tendo essa questão como guia, Monumetria se estruturava a partir de algumas intervenções volta das diretamente à estrutura arquitetônica e museológica da Pinacoteca do Estado de São Paulo (projeto arquitetônico de Ramos de Azevedo, em relação próxima, em termos urbanísticos, com o monumento em questão, erguido em frente ao prédio, em 1932).Pretendia apropriar-se de procedimentos curatoriais e museológicos, a ponto de confundir o espectador sobre a origem de seus resultados. Por isso dependia de um intercâmbio intenso entre a curadoria e a atividade dos artistas. Além da curadoria, propunha desenvolver parcerias com quase todas as frentes de trabalho da Pinacoteca:o setor educativo, o de restauro, o centro de arquivo, na intenção de que estes setores chegassem a contribuir diretamente com o processo de criação, tanto quanto a curadoria e os artistas.Previa ainda uma publicação que se descolava do padrão das editadas pela Pinacoteca. Realizada paralelamente à exposição, ela pretende user não um catálogo para registro das ações ou intervenções, mas um desdobramento gráfico destas, em diálogo com um estudo histórico relacionado a seu contexto.Tudo isso sem contar com um único patrocínio externo ao orçamento da Pinacoteca.
Bem ou mal, acabamos por realizar boa parte de nossas pretensões. Éramos (e ainda somos, de vez em quando) um grupo de três artistas, o Delenguamano. O nome, que não soava estranho só a mim, mas também a todos os nossos colaboradores, significa “De língua à mão”num espanhol comprimido, invenção de meus colegas colombianosNéstor Gutiérrez e Santiago Reyes.Um ano após a primeira conversa com Ivo Mesquita, que acolheu o projeto – vão aqui, mais uma vez, nossos agradecimentos pela coragem e paciência –, lá estávamos abrindo a exposição em março de 2009.
Mas qual a razão deste pequeno relato agora? Talvez a menção do caso contribua para uma discussão que reaparece, aqui e ali, a respeito das fronteiras entre o trabalho ou atuação nas artes visuais, o trabalho “artístico”, e a atuação curatorial. Melhor dizendo, sobre a apropriação da prática curatorial como possibilidade de criação artística.
Nossa proposta era criar um campo de ação no qual as práticas curatoriais mais reconhecíveis pelo público da Pinacoteca, a estética e os procedimentos de organização museológica seguissem como possibilidades para nossas intervenções.
Já não é raro que artistas realizem curadorias, nem que se admita que a função de curador esteja fundada em um exercício criativo. No entanto, havia um movimento adicional importante em relação ao projeto.Monumetriase propunha a interagir simultaneamente com dois campos de atuação: o da arte contemporânea, enquanto espaço pré-delimitado para intervenções que se querem críticas em relação à instituição, e a museologia, enquanto campo dos procedimentos relativos ao arquivo, exposição e registro.
Claro, este tipo de operação também já não representa novidade. Muito do que se faz na “categoria intervenção” passa por apropriações de procedimentos ou características que remetem ao ambiente do museu, muitas vezes na tentativa de subvertê-las. Um tipo de “engana-olho” que seduz o espectador com a possibilidade de revelar-se ali a estrutura ideológica da instituição, que neste jogo aparece involuntariamente como representante particular do conceito de poder.
Contudo, embora estes dois campos pareçam ter trocado questionamentos e modos de operar entre si, ficava a impressão de que também cuidaram de preservar seus limites de atuação em grande parte das situações, a fim de manter seu status no funcionamento cultural: a museologia resguarda sua posição técnica para que prevaleça a influência que exerce na estrutura do museu, ao passo que a produção artística contemporânea muitas vezes se contenta em exercer pontualmente a função de elaborar ironias que nem sempre revelam as contradições das estruturas nas quais intervêm. Deste intercâmbio tenso entre saberes vinha nosso interesse: melhor usá-lo enquanto potencial enriquecimento das possibilidades de intervenção, do que simplesmente acusar seu aspecto cínico.
Era preciso, portanto, intervir em meio àquilo que geralmente é considerado secundário ou cenográfico. Entender os meandros da instituição como um lugar em si. Entender todos os elementos do patrimônio e instâncias envolvidas no projeto (monumento, documento, museu, projeto arquitetônico, obra de arte) em uma concepção própria de espaço público. Propor, enquanto espaço de encontro entre múltiplas noções do público, a discussão fundamentada no choque de fluxos provenientes de âmbitos e níveis heterogêneos, colocando os atores deste espaço no centro do conflito, como seus ativadores. Intervir, desde que se pudesse manter a tensão própria das relações que edificam o espaço institucional. Desde que, de alguma forma, se revelassem contradições entre estes campos, por meio de sua contraposição.
Era preciso, portanto, errar o alvo comum às práticas de intervenção. Errar o lugar e o público-alvo prévio das exposições de arte contemporânea em São Paulo.Desta percepção resultou a opção de evitar o espaço que geralmente acolhe as exposições de arte contemporânea na Pinacoteca, ou seja, o programa de exposições do Octógono, e em seu lugar, focalizar os espaços do museu que pudessem representar uma relação mais cristalizada entre arte e memória, e que por isso oferecessem maior possibilidade de deslocamento.
Disso também resultou uma acolhida ambígua da exposição pelo meio. Sem os signos habituais utilizados pelas intervenções de arte contemporânea, nem a reafirmação dos códigos museológicos típicos das exposições chamadas “históricas”, a abstração que geralmente recebe a denominação de “público” teve de rearticular-se em novos grupos para lidar com o que via, em reações das mais diversas. As muitas que presenciei formam um conjunto de possibilidades imprevistas que ainda agora tento digerir. Mas justamente a visão do imprevisto constituiu a riqueza da experiência.
Enfim, pretensões são quase sempre ridículas. Mas há aquelas que valem apenas por manterem aberta a possibilidade de pretendermos algo que não nos seja oferecido como já pronto, ou como disponível ao bom andamento institucional e mercadológico. Num circuito onde boa parte dos produtos é pensada para lugares específicos, quase sempre na tentativa de atender às suas demandas, a possibilidade de errar acabou associada à não entrega do produto esperado.E se tivermos a pretensão de produzir algum tipo de deslocamento ou estranhamento na relação com a produção artística, me parece correto que mantenhamos aberto o caminho para o erro.