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Fui convidada para uma residência em Birzeit, na Cisjordânia, em setembro de 2009. Este convite mais uma vez acionou a percepção de minhas experiências anteriores como uma estrangeira em um lugar desconhecido. No entanto, esta viagem tinha características muito específicas e marcantes, que a diferenciavam do perfil mais “suave”, quase romântico, de outras viagens a residências. A delicada situação política e social da Palestina, juntamente com todas as restrições em meu processo de entrada e circulação no país, geravam uma situação de alerta, uma expectativa em relação à viagem, que se refletia também nos comentários das pessoas em reação à notícia: “mas não é perigoso?”, “não tinha um outro lugar pra você ir?”, “como assim, Palestina?!”.
Frente a toda essa situação – aos possíveis riscos e a certo grau de incerteza quanto à possibilidade ou não de entrar no território palestino, de ser capaz ou não de retornar de lá, à vulnerabilidade a situações fora de meu controle – o mero fato de estar na Palestina, de viver lá por um período, e de ser capaz de retornar, torna-se para mim uma performance. Decidi, a partir disso, manter um diário aberto. Convidei um grupo de pessoas para acompanhar minha trajetória e minhas percepções, abrindo a possibilidade de estabelecer um relato mais aberto para pessoas da minha cultura e de manter um canal de comunicação com um grupo que fosse neutro em relação às minhas experiências. Tratava-se também de uma estratégia de segurança, de acompanhamento, como se eu estivesse sendo monitorada à distância.
Chego então à Palestina inevitavelmente ocupando o lugar de artista-turista – pelo deslocamento geográfico, pelo desconhecimento do local, pelas diferenças de cultura e de idioma – e me proponho uma aproximação com a região a partir desse ponto de vista. Permito, assim, que meu olhar e minha percepção sejam construídos com os elementos, as imagens e as situações que de imediato me impactam mais fortemente.
A intensidade da experiência acabou tornando inevitável o desejo de executar outros projetos, além do diário e da performance pensados inicialmente. E, como se poderia esperar, aquelas impressões iniciais foram influência decisiva nos demais trabalhos que eu viria a planejar ou executar durante o período da residência.
Após algum tempo, percebi que minha atenção se voltava sempre para a complexa relação que se estabelecia entre duas culturas, entre dois povos em permanente conflito – muito embora eu estivesse claramente vivendo em apenas um dos lados da estória. E, nesse lado, é como se a vida estivesse constantemente em suspensão, em transição. Cada dia era vivido com intensidade, como se o dia seguinte nunca pudesse ser previsto ou planejado com muita certeza. Ao mesmo tempo, e talvez como consequência disso, eu percebia uma sensação de grande desapego e de tolerância a situações adversas.
Todos esses aspectos se refletiam nas relações que se estabeleciam entre os participantes da residência e, em última instância, nos trabalhos produzidos. A residência voltou-se muito à experiência de viver o cotidiano da Palestina e minha percepção é de que a produção dos trabalhos permeou essas questões. A intensidade da experiência gerou trabalhos fortes e com muito envolvimento em relação à situação local.
Com o passar do tempo, percebi que pouco a pouco eu passava de artista-turista a artista-política. A pesquisa desenvolvida durante a residência ficou fortemente associada a minhas percepções quanto ao ambiente a meu redor e quanto a alguns aspectos centrais do cotidiano dos palestinos. Em meu caderno de anotações, apareciam focos de interesse e possibilidades de pesquisa, quase como uma lista de desejos, e sempre existia alguma conotação política ou social. Desejos de alterar o mapa da região, de criar passaportes palestinos, de repensar a função do muro e dos checkpoints [2] , de gerar novas formas de distribuição de água, de trocar os fuzis M-16 do exército israelense por espingardas de bolhas de sabão, de coletar uma nova série de resoluções – como as da ONU – propostas por cidadãos palestinos. Eu, “a última das românticas” …
Dois trabalhos foram enfim executados a partir dessa perspectiva de artista-política, abordando duas questões cruciais na região: primeiro, a presença do muro e dos checkpoints e as limitações à liberdade de movimento no território; segundo, as restrições no abastecimento de água na Palestina, que se reflete na presença maciça de caixas d’água, em grande número, nos telhados.
O primeiro desses trabalhos – um vídeo intitulado Vanishing Point (Ponto de Fuga) – captura o fluxo de veículos e pedestres no checkpoint de Qalandia, perto de Ramallah. Filmado do alto de um prédio próximo ao local, com um enquadramento fixo, o vídeo mostra o movimento em Qalandia durante um dia inteiro. O título traz um jogo de palavras, pois Vanishing Point também significa “ponto de desaparecimento” e o trabalho propõe uma reflexão sobre desaparecimento da cultura, perda de identidade e restrições à liberdade.
As caixas d’água – massivamente presentes nos telhados da Palestina e tão visualmente marcantes na paisagem – são o elemento central em WaterSkyline, uma instalação composta por uma série de fotografias em preto e branco. Com fotografias coladas diretamente sobre as paredes, uma ao lado da outra, formando uma linha do horizonte imaginária, a instalação cria uma nova paisagem e ressalta as restrições do abastecimento de água na região [3] .
Continuo andando com minha lista de desejos e ainda me sinto impregnada pela luminosidade, pela poeira e pelo som das mesquitas na Palestina. Estar lá foi uma experiência importante e intensa, que influenciou fortemente os trabalhos produzidos durante a residência. Em última instância, minha produção refletiu a intensidade das relações, o envolvimento com a situação local e o desejo de mudança.
[1] — A primeira experiência nesse sentido foi em Berlim, em 2006, quando apresentei uma intervenção urbana chamada Estrangeiro, e se repetiu em residências em Shatana, Jordânia (2007) e em Córdoba, Argentina (2008).
[2] — Checkpoints são postos de controle presentes no território da Palestina e controlados pelo exército israelense, cuja função é controlar e restringir a circulação de palestinos em seu próprio território, bem como sua entrada e saída em território israelense.
[3] — Na Cisjordânia, o abastecimento de água é controlado por Israel, que só libera seu fornecimento durante alguns dias da semana. Daí a necessidade de inúmeras caixas d’água em cada edifício, para estocagem.