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A segunda edição do prêmio, 2006/2008, teve entre seus ganhadores a artista mineira Laura Lima (L.L.) que desenvolveu as obras ‘Galinhas de Gala’ e ‘Nômades’. No Museu de Arte Contemporânea que se localiza no Dragão do Mar em Fortaleza a obra ‘Galinhas de Gala’ suscitou muitos questionamentos, estranhamento e contestação pelo uso dos animais, que é sempre recorrente no trabalho de Lima.
Perceber o trabalho de Laura Lima em Galinhas de Gala e Nômades, as questões que lhe dão suporte e as polêmicas por ela provocadas, é também pensar a relação travada entre o ser humano e a natureza, com seus desdobramentos, sua ética e a falta dela, sua convergência e disparidade. O gênero humano integra a natureza e de forma alguma está dissociado dela, por mais que nossa busca por uma racionalidade que nos distinga e afirme no mundo tente suprimir nossa dimensão biológica, animal e instintiva. O fato é que o ser humano interage e modifica o meio-ambiente como nenhum outro animal o faz.
Em Galinhas de Gala, Laura Lima pensa e expõe a questão da ornamentação, com uma plumagem colorida nas galinhas, causa estranhamento, admiração e/ou contestação. Pensar em animais por si só como performers já suscita uma necessidade de revisão de conceitos ou mesmo de criação de nomes para se falar sobre as obras de Lima, como conta Luis Camilo Osório que acompanhou o desenvolvimento do trabalho da artista no prêmio Marcantonio Vilaça.
Além disso, ainda encontramos questionamentos sobre a ética na relação com os animais. Há quem conteste o fato dela trabalhar com seres vivos, colando plumas nas penas originais das galinhas, o que caracterizaria maus-tratos, além do fato de estarem expostas em um museu que não é originariamente seu habitat. Porém na questão do processo de colagem das penas não existe dor, pois os nervos não estão presentes nas penas. A artista relatou que normalmente elas ficam muito calmas. Embora algumas vozes tenham se levantado contra o uso da galinha neste trabalho, em geral não se questiona se é cruel colocar uma galinha em um galinheiro onde esta servirá para a alimentação. Por que se julga que a uma galinha é possível o destino da cozinha e não os espaços de galerias e museus, se estas podem trazer muitas discussões e perspectivas que nenhum objeto inanimado seria capaz de produzir?
O trabalho de Lima não suscita apenas os questionamentos acima citados, a partir dele podemos, além da percepção estética e de uma possível experiência artística por parte do observador ou admirador da obra, também discutir e pensar a questão da ornamentação.
Aos nossos olhos as galinhas não se distinguem umas das outras, porém as disposições das cores e penas que Laura L. põe nas galinhas introduzem nesse contexto um elemento de diferenciação. O fato de que para o mundo animal a plumagem também tem um caráter estimulante na busca do parceiro para o acasalamento, converte-se em fato interessante no processo de construção da obra de L. L.
Quando uma galinha com penas coloridas e, por isso diferente das demais, era colocada em meio àquelas “galinhas normais”, ocorria um isolamento. Mas à medida que as outras galinhas iam ganhando penas novas e coloridas, o elemento recorrente recaía sobre as penas coloridas e diferentes. Ocorria então um isolamento o qual seguia o mesmo princípio, mas de forma invertida: a minoria distanciada da maioria, mas nesse caso as sem penas coloridas eram as diferentes e excluídas. Houve ainda outra mudança evidente no comportamento das galinhas – o galo manifestou mais interesse pelas galinhas com penas coloridas, assim como as galinhas sem esse tipo de pena, interessaram-se pelas ‘galinhas de gala’, como as denomina a artista.
Guardadas as devidas proporções, a observação destas mudanças no âmbito do comportamento animal pode nos levar a uma reflexão sobre o universo das atitudes humanas. Os adereços, roupas, ornamentos em geral e o uso do corpo como suporte de intervenções de objetos, assim como a transformação do mesmo, fazem parte da nossa vida cotidiana e são construtores da nossa ‘imagem social corporal’ [1] . Em cada época da humanidade foram desenvolvidos roupas, usos e costumes diferenciados que foram construções históricas, ou seja, manifestam valores não de maneira essencialista, mas de modo relacional, a partir do olhar de quem observa e de quem se utiliza ou pratica os mesmos. Em um processo dialético em que cada ser humano faz parte da construção imagética do outro.
A importância desta dinâmica fluida dos limites da imagem corporal para uma sociologia da imagem corporal se evidencia quando percebemos que, para seres sociais, um objeto nunca é apenas um objeto, mas sempre também o mediador de uma relação. O processo de atribuição de sentido aos objetos e às ações é justamente o processo de socialização destes objetos e ações, o processo através do qual eles emergem enquanto propriamente sociais. Por isso a incorporação de roupas e objetos e o vínculo duradouro de excreções corporais à imagem corporal é sociologicamente relevante: pelo fato de que roupas e objetos nunca são apenas pedaços de matéria, e excreções nunca são apenas nossa biologia, mas sempre também demonstrações de statuse poder, opções estéticas, capacidades, condições para certas atividades, enfim, mediadores de inúmeras relações. [2]
Pensar no chapéu tão usado no início do século XX, como adereço indispensável ao “bom chefe de família”, as pinturas indígenas ou mesmo os adereços no corpo mediante os quais cada um representava ocasiões e status diferenciados, as pulseiras de ouro no antigo Egito, as perucas do século XVI que demonstravam nobreza. Enfim são inúmeros os exemplos os quais apontam que o ornamento é um forte mediador de relações políticas, religiosas, sociais, pessoais.
No estudo dos índios Kayapó [3] é possível perceber como os objetos e adereços utilizados por estes têm um caráter bastante ritualístico e mitológico como, por exemplo, o “Botoque é o termo que designa os discos de cerâmica, madeira ou conchas que os Kayapó (…)usam encaixados nos lóbulos das orelhas ou do lábio inferior. (…) são usados para representar a autoridade e maturidade de um homem kayapó. Eles têm como função enfatizar os sentidos a que estes órgãos se referem” [4] .
Quanto às pinturas, este estudo de caso mostra que:
A pintura de jenipapo é uma atividade contínua e um hábito do cotidiano Kayapó intrinsecamente relacionado com a concepção de um ser Kayapó e com sua compreensão de um ciclo de vida, idade, sexo e relações sociais. É uma pintura essencialmente informativa e está relacionada aos processos de socialização. A palavra que se refere à cor preta na língua kayapó é a mesma usada para se referir à morte e à área da floresta que circunda a aldeia. Isto demonstra a relevância da presença da pintura de jenipapo para sua própria condição humana. As estampas de jenipapo são numerosas e obedecem regras estéticas como simetria, linhas paralelas, finas e regulares, textura fechada e proporções harmônicas entre si. É aplicada ao longo do corpo. [5]
Mesmo em nossa sociedade moderna é possível perceber de que modo a forma como nos vestimos, nossos usos e costumes criam círculos de inclusão e exclusão social. Tecemos relações de estranhamento e identificações também a partir dos ornamentos e das roupas. Reproduzir ou contestar os padrões de beleza ou dos usos de adereços perpassam a dimensão psicológica de cada ser humano, trabalhando conceitos de aceitação, identificação, diferenciação, individualidade e coletividade. Os grupos urbanos são grandes exemplos disso. Cada estética assumida por estes grupos é porta-voz da ideologia, a aparência destes vem cheia de conceitos, condutas e revela a vida dos mesmos.
Este trabalho de Lima evoca um livro de Leonardo Boff, A Águia e a Galinha no qual ele faz uma belíssima metáfora sobre a condição humana dentro destas duas perspectivas. E sobre a galinha, ele fala de como essa cria raízes, ela se coloca no galinheiro e vive aquele mundo, diferentemente da águia que não cria raízes e está sempre voando e fazendo ninhos, e assim metaforiza a excelência da condição humana. Aqui levantamos como possibilidade interpretativa um paralelo entre Boff e Lima.
Quando o ser humano vai fincar raízes e construir seu lugar social (assemelhando com o que a galinha faz no galinheiro), ele se utiliza de ornamentos. O político, por exemplo, tem que ter seu paletó para passar uma “boa imagem”; quando se busca um emprego, se veste as “roupas mais adequadas”, nas comemorações de fim de ano da mesma forma; então pensar o indivíduo que se insere na sociedade é também pensar em como sua imagem tem de se enquadrar nos padrões estabelecidos por este grupo, perante o qual ele está se propondo pertencer. E da mesma forma aquele que se propõe a questionar e não reproduzir, vai buscar roupas e adereços que contrastem com os paradigmas imagéticos do espaço social em que ele se insere. Seja pela aceitação ou diferenciação que constrói os grupos e os indivíduos, assim como nas desigualdades sociais, a vestimenta está presente. Os estereótipos falam. Não quero aqui ser simplista em relação à importância das roupas, adereços e ornamentos e pensar que somente estas, por uma espécie de automatismo, determinam a composição de nossas personalidades e sociabilidades. De fato, esta discussão é bem mais complexa. Nossa intenção é tão somente a de dar início a uma discussão a partir de uma obra atual e tão instigante como Galinhas de Gala e pensar acerca dessa nossa ‘imagem corporal social’, e seu papel nas relações que estabelecemos dentro de nosso cotidiano.
Schilder (1999:266-7) citado por Ferreira [6] enumera questões muito relevantes acerca deste processo de construção imagética pessoal:
1 – As imagens corporais nunca estão isoladas. Estão sempre cercadas pelas imagens corporais dos outros.
2 – A relação com as imagens corporais alheias é determinada pelo fator de proximidade ou
afastamento espacial e pelo fator de proximidade ou afastamento emocional.
3 – As imagens corporais encontram-se mais próximas e mais intimamente ligadas nas zonas
erógenas.
4 – A transferência de zonas erógenas também se refletirá na relação social com as outras imagens corporais.
5 – As alterações eróticas da imagem corporal são sempre fenômenos sociais e são acompanhadas por fenômenos correspondentes na imagem corporal dos outros.
6 – As imagens corporais são, em princípio, sociais. Nossa própria imagem corporal nunca está isolada. Pelo contrário, está sempre acompanhada pelas imagens corporais dos outros.
7 – Nossa imagem corporal e a imagem corporal dos outros não dependem primariamente uma da outra. Têm a mesma importância e uma não pode ser explicada pela outra.
8 – Há um intercâmbio contínuo entre partes de nossa imagem corporal e das imagens corporais dos outros. Há projeção e personificação. Mas, além disto, podemos nos apoderar de toda a imagem corporal de outra pessoa (identificação) ou entregar nossa imagem corporal como um todo.
9 – As imagens corporais das outras pessoas e suas partes podem ser inteiramente integradas na nossa e formar uma unidade, ou podem ser simplesmente adicionadas à nossa imagem corporal, formando uma mera somatória.
10 – Estamos sempre enfatizando que o modelo postural do corpo não é estático e está sempre se modificando segundo as circunstâncias da vida. Encaramo-lo como uma construção criativa. É construído, desmanchado e reconstruído. […] Quando criamos uma imagem corporal adequada a nossas necessidades e tendências, esta não permanece inalterada – há um fluxo contínuo, e cada cristalização é imediatamente seguida por um estágio plástico, em que são possíveis novas construções e esforços, de acordo com a situação emocional do indivíduo.
Todas essas questões acerca das experiências estéticas na construção das já tão citadas ‘imagens sociais corporais’ trazem questionamentos sobre a elaboração ética na sociedade contemporânea, pois a partir da segregação entre os indivíduos que se reconhecem ou não, reafirma-se então este distanciamento social que muitas vezes culmina em desigualdade e hierarquia cultural, cada grupo se percebendo no topo desta linha social que abarca as diferentes culturas. Pensamos que as diferenças não devem motivar a segregação, mas sim o diálogo e o respeito dentro desta diversidade social de realidades e verdades. Essa obra de Laura Lima, não tem como elemento central a questão do mal ou bem-estar das galinhas, como foi ressaltado pela mídia local e por determinados grupos sociais. Ao contrário, seu cerne reside em seu potencial reflexivo acerca da condição humana, a qual evidencia o modo como, muitas vezes, estamos tão inseridos em nossos ‘galinheiros’, repetindo discursos e visões de mundo arraigadas, que não nos permitimos repensar o que nos rodeia a partir de Galinhas de gala.
[1] — Referência ao texto Sociologia da Imagem Corporalde Pedro Peixoto Ferreira. Doutorando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Desenvolve atualmente pesquisa sobre as relações entre as técnicas do êxtase na música eletrônica e no xamanismo (apoio FAPESP), dezembro, 2003.
[2] — Ferreira, Pedro Peixoto. Sociologia da Imagem Corporal.2003. p. 9.
[3] — S/autor.A ornamentação corporal como representação social dentro do contexto indígena. Os índios Kayapó: um estudo de caso. PUC-RIO – certificação digital 0410910/CB.
[4] — Idem; ibidem, p. 49.
[5] — Idem; ibidem, p. 60.
[6] — Ferreira, Pedro Peixoto. Sociologia da Imagem Corporal.2003. p. 11.