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Em muitas das minhas caminhadas noturnas pelos bares do Recife Antigo, Bairro de São José e Boa Vista, sempre tenho encontrado um poeta na sua peregrinação diária, tentando vender seus livretos de poesia. No movimento que ele realiza de mesa em mesa pela Rua da Moeda ou pelo Burburinho, outras pessoas também estão de mesa em mesa, circulando entre os clientes dos bares oferecendo seus produtos: alguns homens tentam vender amendoins e castanhas, uma senhorinha seus caldinhos e uns meninos oferecem chicletes e pastilhas. Mas o poeta está vendendo e divulgando sua produção poética de modo alternativo e essa é uma questão que me instiga (intriga) toda vez que o vejo. Esse poeta me faz refletir não apenas sobre o papel da poesia e dos poetas na sociedade, mas, sobretudo, sobre uma produção alternativa e uma atitude: “o faça você mesmo”, o desejo de pôr em circulação ideias (produções alternativas), de não se conformar com a falta de espaço para publicação, de se colocar contra a imobilidade e a captura.
Comecei com os atravessamentos de um poeta urbano e anônimo das noites e ruas do Recife, para pensar sobre as possibilidades que podem ser criadas transitando pelo universo alternativo. Desse modo, tomo os fanzines e a atitude que perpassa essas produções como práticas que constituem microrresistências no cotidiano.
Um conjunto de vários fanzines consegue criar um circuito, onde as ideias são livres e variadas, independente do conteúdo ou da forma de cada um.Arquitetura móvel, fluida, geografias traçadas ao gosto do seu fanzineiro, ou seja,do sujeito que produzo fanzine.Assim, essas geografias, compostas por escolhas, apontam seus percursos existenciais e os percalços para produzir um material que expressa o que pensa. Independente das “grandes avenidas”, os fanzines transitam nas “veredas”, criando sua própria cartografia, seus próprios itinerários.
Assim, o que de mais importante os fanzines carregam em sua mochila é a sua liberdade de criação e de expressão, como também a paixão que o amadorismo preserva. Essas publicações resistem contra a imobilidade e o silêncio. Articulam-se de modo a produzir espaços de diálogo por meio de astúcias e artimanhas, deslocando as concepções convencionais de autor, editoração e distribuição do próprio material. O que pode ser percebido através do fanzine Área de Mancha: “Pior ainda, são os artistas brasileiros não possuírem meios de publicarem com dignidade seus quadrinhos, muitos aderindo aos fanzines que resistem contra a invasão norte-americana e japonesa em nossas bancas”. De modo a complementar essa discussão, o editorial do Balaio de Gato acrescenta: “As edições se sofisticaram e vão desde o off-set até o computador, ou mesmo alguma grande editora, uma vez que o conteúdo e o tráfico de ideias são encarados como mais importantes que o veículo, desde que não haja cortes ou modificações nos textos. Mas muitos poetas ainda preferem uma edição barata e a venda de mão em mão”. Um aspecto muito forte presente nessas citações é a invenção das próprias possibilidades de ação, uma movimentação que provoca os acontecimentos, os encontros, compondo uma rede de relações e de atravessamentos.
Diante dessas questões, penso que temos, nessaspublicações, um exemplo bem diferente dos grandes instrumentos de codificação convencionais, porque esses dessacralizam os espaços de significados formais construindo seus próprios códigos e significados. O contrato que eles estabelecem entre si é o da amizade, da fidelidade e da honestidade contra as instituições. Na lógica dos fanzines, “eu te dou ou troco, e tu fazes o que quiseres com ele”. No seu circuito, o autor não é um escravo da editora, pois ele nem mesmo é um autor, no sentido literal do termo. Além disso, independente da posição por ele ocupada, a produção do seu material se dá de forma autônoma e é repassada ao leitor, na maioria das vezes, sem que haja lucros. Porém, há os casos de muitos poetas e quadrinistas que atuam junto ao universo dos fanzines vendendo seus trabalhos.
Um outro ponto importante diz respeito à autoria e à ideia moderna de obra. Um bom exemplo está no editorial d’O Idealista,que desconstrói qualquer agenciamento da cultura de equivalência, especialmente no que diz respeito àconcepção moderna de obra e autoria: “Ajudemos a propagar o idealismo. Se você gostou deste zine, recomende-o a alguém, divulgue este endereço, empreste ou copie este zine pra quem você quiser. Como sempre, este zine é 100% livre de direitos autorais. Copie, inteiro ou em partes, tudo o que achar útil ou interessante”.
Pensando a composição dos fanzines através das montagens com colagens, desenhos e sobreposição de textos, a sua prática e de quem os produz é uma prática infame, ou seja, uma ação de se colocar onde não é permitido, de roubar informações, imagens e construir um corpo híbrido, uma cartografia clandestina que contenha uma subjetividade singular.
Em alguns casos esses trabalhos tornam-se uma produção compartilhada feita a muitas mãos, com pessoas de vários lugares diferentes participando como colaboradores, enviando imagens e textos. Como exemplo, podemos citar o Tom Zine, que se constitui através de uma grande rede de leitores e colaboradores. Podemos observar o que está sendo dito através do editorial do Tom Zine: “Acreditei que fosse fácil: bastaria juntar um monte de histórias em quadrinhos, alguns autores de talento, umas referências, acrescentar um toque de gente da terra e pronto! Ledo engano. Nossa redação foi abalroada por dezenas de contribuições, tudo da melhor qualidade. Tanta coisa boa, que nem o TZ, que se gaba de ter um número razoável de páginas, seria capaz de enquadrá-las.”
Ziguezagueando pelos corredores da cultura, os fanzines se apresentam como (um elemento) capaz de dar a ver um conjunto de práticas entrelaçadas por existências diversas, práticas essas que transitam nos microespaços. Assim, lá onde os olhares vigilantes procuram os grandes acontecimentos, os fanzines circulam pelo cotidiano das ruas, nos shows de rock, nos encontro de amigos em bares e em rodas de poesia. Lá onde o olhar domesticado não alcança as nuances dos detalhes e se perde na dispersão do múltiplo, estão as práticas deslizantes dos sujeitos que se multiplicam inventando mundos microscópicos. Em consonância com o que está sendo discutido o editorial do Balaio de Gato monta a seguinte paisagem: “Com os poetas marginais, o que vai acontecer é um mergulho no cotidiano, na vida mesmo, com toda sua ferocidade. Na linguagem coloquial. Em algum tipo de antiarte. Na deshierarquização estética. Na eroticidade explícita. Na coragem para expor as tripas da condição humana, nua e crua. Daí que muitos flashes do dia-a-dia, flertes com letras de música, notas de intuições; e a obra, um registro de processo vital”.
Essa passagem do Balaio de Gato é muito esclarecedora, pois expressa bem o que via de regra circula pelos fanzines enquanto assunto e abordagens. Contemplando não só o universo dos que trabalham com poesia, perpassa também o universo das letras de música de boa parte das bandas que se utilizam desses espaços para divulgação dos seus trabalhos, bem como o mundo das HQs. É bem verdade que o cotidiano é a matéria-prima da produção de muitas pessoas do mundo underground e alternativo, principalmente pelo campo das invenções através da linguagem e pela atitude de produzir deslocamentos naquilo que é formal ou instituído. O cotidiano é apropriado, por essas pessoas, para ser ressignificado.
Transando vários elementos heterogêneos, os fanzines apresentam-se como multirreferenciais. São influências tais como o Dadaísmo, com sua proposta de antiarte, a Geração Beat e principalmente Bukowski e sua linguagem coloquial e chula. As produções da década de 70, no Brasil, são outra referência aos fanzineiros, marcadas pela produção em mimeógrafo, pequenos livretos e uma poesia irreverente e irônica, como a escrita de Chacal e Cacaso. Porém, uma das influências mais fortesà constituição existencial dos fanzines é o punk com sua atitude do “faça você mesmo” e a sua estética do grotesco e do absurdo, que desconstrói as formalidades e os padrões editoriais.
Desse modo, os fanzines não ocupam um lugar fixo de fala, de acumulação de ganhos e emanação de discurso através de meios de comunicação convencionais, tais como revistas periódicas e jornais semanais. Na maioria das vezes os fanzineiros, consomem essa imprensa para dela fazer recortes e realizar colagens. Um consumo que deforma e ressignifica, na condição de produzir uma diferença. Além do mais, por não funcionarem a partir de uma noção estável de acumulação de dados, como as publicações convencionais do mercado editorial, os vestígios e “arquivos” gerados a partir dessas publicações são sempre pessoais, pertencendo a alguém que coleciona. Dessa forma, não ficam instituídos os lugares da memória enquanto fixidez, como lugares de visitação pública que podem ser acessados e consultados por todos de uma comunidade.Ou seja, esse material é ausente do circuito dos arquivos públicos. Justamente, porque não pertencem ao universo dos monumentos, das grandes marcas ou das grandes narrativas. No entanto, os fanzines são um lugar de acontecimento e de produção de sentidos, como forma de se colocar no mundo e de interpretá-lo.
Referências:
_Área de Mancha. São Luis-MA, sd.
_Balaio de Gato. Recife-PE, nº 12, 1999.
_O Idealista. Belo Horizonte-MG,sd.
_Tom Zine. Frei Gaspar-MG, sd.