www.revistatatui.com.br
Convidou-nos a duas experiências desconcertantes. Em uma delas somos chamados a ouvir depoimentos pessoais sobre a natureza da relação amorosa, enquanto imagens em câmera lenta dos rostos dos depoentes são projetadas na parede.As falas tateiam árduas definições.As vozes não coincidem com as imagens,e são editadas de maneira a sempre haver dois relatos paralelos. Não demorou a minha identificação com a melancólica tentativa daqueles seres em definir o que consideravam ser a experiência primordial,necessária,insubstituível.A segunda proposta é o convite a que deixemos nosso próprio relato. A câmera em foco, uma cadeira posta à sua frente,um minúsculo microfone e eu engasgada sem conseguir responder às perguntas sugeridas: você já teve uma desilusão amorosa? acha que é capaz de verdadeiramente comunicar-se com a pessoa a quem ama? vive um amor no momento? dentre outras.Não havia obrigação em responder,mas uma dúvida me afligia:o fato de não conseguir expressar em palavras significava jamais ter vivido realmente a reciprocidade do amor? Pois não houve nada que eu dissesse que não soasse clichê de novela. Ante o desconforto, apressei-me em responder rápido e ridiculamente.Não me reconhecia naquelas frases estanques e rasas,temia a possibilidade de estar em mim a superficialidade estéril. Acalmei-me pensando não ser mesmo o amor algo pragmático, nem dado a capturar-se em manuais explicativos. Deixemos aos filósofos e poetas a função que a eles confiamos: traduzir em palavras o inefável.
É um trabalho em construção.Das artistas,as informações acerca da imprevisibilidade dos caminhos que tomaria o projeto, sem estimativas de resultados. Também destacaram a proximidade como elemento. Tentativa de aproximação o menos artificial possível:o artista se apresenta. Tudo isso num exíguo espaço de uma semana. Afeto? Investiguemos.
Na cata de sonhos eróticos,pela primeira vez em execução,o trabalho,que havia sido pensado para acontecer no interior de um carro, tomou de assalto um box do Mercado São José. Ambiente público. Uma aproximação,uma proposta. O envolvimento de quem aceita a abordagem e, a partir desse primeiro contato, engendra os demais participantes.
Uma comerciante local, além de dividir o seu sonho erótico, cede um canto de conversa para próximos relatos, onde são registradas mais 10 picantes histórias. A interlocutora propôs o bairro de Casa Amarela para o dia seguinte, onde certamente o trabalho conseguiria ainda mais sonoras sexuais.
Um adendo factual: a idéia das artistas é a realização de uma espécie de mapeamento em várias cidades e pretendem, por fim, compor o áudio com imagens não literais.
Sim. Afeto. A mim se apresentou o afeto e a cumplicidade. O trabalho só acontece pela abordagem e pela aceitação das pessoas em dividir os sonhos e, nesse momento, vi uma interferência na geografia das relações humanas: as pessoas tornam-se momentaneamente cúmplices. Gerou-se ali uma mobilização em torno do objetivo proposto pelas artistas:pequenas redes de relações realimentadas ou criadas pela proposta.
A performance assim se fez: um carrinho, que poderia ser de feira, não fosse o branco cirúrgico que o envolvia; compartimento de guardar os instrumentos do implante; duas almofadas tipo colchonete, para o conforto do paciente-transeunte,na área onde ordinariamente estariam as frutas e verduras;um amplo e branco guarda-sol, pois a luz necessária à operação ao ar livre não o dispensava.Talvez a necessidade dos citadinos em receber novos corações tivesse gerado ali algumas quilométricas filas.Em todo caso,já era sintomática essa necessidade geral, diante da pronta apresentação dos poucos pacientes que presenciei.Pouco mais das 15:00 e foi a minha vez de recebê-lo.O coração foi a mim transferido pela técnica cirúrgica do silk screen.A artista,uma tela e eu.Em plena operação, segurava-a junto à parte superior do tórax. Sob o firme comando da cirurgiã-artista (“Feche os olhos enquanto o coração é transferido”), senti, rápida e intensa, uma pressão sobre meu seio.O firme comando se tornara um generoso compartir.Com paleta,espalhando a tinta vermelha,ela me deu um novo coração. Os três trabalhos, cada um a seu modo, encontram no afeto o seu tema. Além disso, não existem sem a adesão, sem a sedução de um público que os alimenta e os completa. O compartilhamento de sensações de alguma maneira religando as pessoas. A vida porque a arte não basta.